Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, novembro 23, 2005

EDITORIAIS de O ESTADO DE S.PAULO

A única política de Lula

Luiz Inácio Lula da Silva fez carreira no sindicalismo e no PT arbitrando divergências a que ele próprio muitas vezes dava corda para servirem exatamente de instrumento de afirmação e consolidação de sua liderança tutelar. Quando o partido cresceu e começou a ganhar eleições para o Executivo, e se multiplicaram - como em qualquer agremiação - os nódulos de interesses insuscetíveis de serem aplacados pelo carisma do pai de todos, foi José Dirceu quem assumiu a incumbência de fazer a terraplenagem das diferenças, impondo aos petistas a sua modalidade particular do "centralismo democrático" dos antigos partidos comunistas.

No governo, enquanto tinha a força e era o capitão do time do presidente, Dirceu continuou a ser o seu braço executor de companheiros e políticas tidas como contraproducentes ao projeto reeleitoral que já estava na agenda de Lula quando ele subiu a rampa do Planalto. Assim foi fulminada, por desastrosa na concepção e desastrada na execução, a versão original do Fome Zero, com o devido defenestramento dos seus responsáveis. Afinal, poucas coisas poderiam atrapalhar mais o projeto que viria a se chamar "Fica Lula" do que o assistencialismo malfeito. Só o comando da política econômica ficou fora do alcance de Dirceu.

Isso porque o ministro Antonio Palocci recebeu carta branca não só para levar adiante as promessas da Carta aos Brasileiros de julho de 2002 de que não haveria ruptura com o que estava aí, mas também para escolher a sua equipe sem interferência do PT. E ele fez uma coisa e outra de forma tal que a esquerda petista não imaginaria nem nos seus piores pesadelos. Obrigado pela crise da corrupção a se desfazer de Dirceu, Lula transferiu para a Casa Civil a aguerrida ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff, sintomaticamente saudada pelo antecessor, na cerimônia de posse, como "companheira de armas".

Dilma, com a anuência ou o incentivo de um presidente assolado pelo "denuncismo", como deu de dizer, e pelo desencanto dos neolulistas - a classe média cujo voto foi decisivo para elegê-lo -, resolveu retomar por outros meios o combate a Palocci, também ele enfraquecido pelo que começou a emergir de seu passado. Além de fustigar a sua política no plano conceitual, investiu contra a alegada avareza da Fazenda na liberação das verbas orçamentárias para os Ministérios. A história dirá se ela foi ou não longe demais no ataque frontal ao "rudimentar" plano de ajuste fiscal de longo prazo, cujos formuladores entendem ser o desdobramento lógico e desejável do atual modelo de gestão das finanças públicas - como voltou a defender ontem, na Camara dos Deputados, o ainda ministro Palocci.

O certo é que a entrevista ao Estado em que ela também disse que a política monetária equivalia a "enxugar gelo seco" complicou, muito além do que Lula previa, a sua perceptível intenção de mexer na política econômica sem mexer no seu titular - o "Palocci sem paloccismo" de que já se falou neste espaço. O presidente parece ter achado que poderia comer o bolo e guardá-lo, revivendo a tática que usava na luta sindical e no PT, citada no início deste editorial. Faltou combinar com Palocci - cujo cenho franzido na solenidade da sanção da chamada MP do Bem proclamava eloqüentemente o fracasso da esperteza do chefe.

Este usou o evento para dar com uma mão o que retiraria com a outra: celebrou a continuidade da política econômica, mas acabou com a ascendência do seu condutor sobre ela. "Neste governo não tem política econômica do Palocci", estabeleceu. "Tem política econômica do governo." Tivesse ele dito isso imediatamente em seguida à entrevista de Dilma, soaria como um desagravo ao ministro. (Além de como demonstração de que tem um mínimo de noção de qual seja o papel de um presidente numa briga entre dois importantes ministros.) Agora, soou como um convite para que pedisse as contas. Contrariando o noticiário de ontem, Palocci até poderá fingir que não era com ele e dobrar-se à política econômica "do governo", que já não será o que foi - ao preço de uma perda devastadora de patrimônio político.

Já se sair, decerto sairá a sua equipe, nela incluído o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles. Acabará então o que resta do governo do presidente que a rigor só foi responsável por uma única política - a de promover, irresponsavelmente, dissensões públicas entre os seus, para, diante delas, posar de líder.


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