Há 20 anos...
Há 20 anos, os presidentes José Sarney e Raúl Alfonsín se reuniam na cidade fronteiriça de Puerto Iguazú para assinar um acordo que marcaria o início de uma nova etapa do relacionamento entre Brasil e Argentina e seria o embrião do Mercosul. Fazia parte do projeto de Sarney e Alfonsín a integração econômica dos dois países. Mas, além disso, tinha um evidente sentido político, que hoje praticamente não é lembrado. José Sarney e Raúl Alfonsín foram os primeiros presidentes civis, após longas ditaduras militares no Brasil e na Argentina. Durante esse período, o relacionamento entre os dois regimes autoritários oscilou do confronto - motivado pela construção de Itaipu, pelo Brasil, e pelos avanços argentinos na área nuclear - à estreita colaboração, em questões de segurança interna, isto é, de repressão aos contestadores das ditaduras. Nos dois países, os regimes militares haviam chegado à exaustão, mas a transição para a democracia foi negociada, daí as leis de anistia, no Brasil, e do "ponto final" e da "obediência devida", na Argentina. Nesse contexto, os dois presidentes civis decidiram aproximar seus países, esquecendo rivalidades históricas que levavam os militares brasileiros e argentinos a se considerarem reciprocamente inimigos potenciais. Para remover as causas da atávica desconfiança recíproca entre os dois países, Sarney e Alfonsín pretendiam não só criar as condições para a cooperação nos campos econômico, social e científico, como acelerar a redução do papel de destaque que os militares ainda tinham nas respectivas vidas nacionais. Foram importantes para a distensão as visitas que Alfonsín fez a Itaipu e Sarney às instalações nucleares argentinas. Por determinação dos presidentes, delegações dos Estados-Maiores das Forças Armadas dos dois países e do Estado-Maior Conjunto passaram a se reunir periodicamente, para tratar de assuntos comuns às duas Forças Armadas. Como conseqüência dessa aproximação, Brasil e Argentina assinaram os acordos que puseram fim à corrida nuclear e submeteram os dois programas a uma rigorosa inspeção dupla, da Agência Argentino-Brasileira de Contabilidade de Controle e da Agência Internacional de Energia Atômica. Passados 20 anos, as Forças Armadas dos dois países cooperam em todos os sentidos, não restando traços do passado de rivalidade e antagonismo. E ambas as Forças Armadas assumiram inteiramente as suas missões profissionais, abandonando a intervenção na política. Em novembro de 1985, os presidentes da Argentina e do Brasil lançaram os alicerces de um processo de integração ambicioso, no campo político, e cauteloso, no plano econômico e comercial. A região, afinal, havia experimentado duas frustrações: o retumbante fracasso da Alalc, na década de 1960, e a estagnação da Aladi, que deveria substituir a Alalc, formando uma zona de livre comércio, mas nunca foi mais que uma zona de preferências tarifárias. Assim, Sarney e Alfonsín iniciaram o processo de integração econômica e comercial com um modesto Programa de Integração e Cooperação Econômica, que dois anos depois evoluiu para um Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento que, no prazo de dez anos, deveria resultar num espaço econômico comum. Seus sucessores, no entanto, tinham pressa e ambições maiores. Em 1991, os presidentes Carlos Menem e Fernando Collor de Mello criaram o Mercosul, incluindo o Paraguai e o Uruguai ao processo de integração que, no prazo de cinco anos, deveria funcionar não como uma zona de livre comércio, mas como uma união aduaneira, a caminho de ser um mercado comum. Lembra o ex-presidente Raúl Alfonsín, em entrevista ao nosso correspondente Ariel Palácios, que a pressa e a ampliação do bloco causaram problemas. O ex-presidente Sarney descreve com mais pormenores o atropelamento do plano original: "Primeiro tínhamos que ter consolidado a integração Brasil-Argentina. Depois, à medida que iam sendo preparados, os países menores poderiam aderir ao cumprir requisitos básicos, como acontece na União Européia. Com a entrada do Uruguai e do Paraguai, ficou difícil aprovar os acordos para aprofundar a integração, porque esses países têm mais dificuldades." E, o que é mais grave, Brasil e Argentina tornaram-se rivais no Mercosul. Da experiência iniciada há 20 anos, restou intacto o fim da rivalidade militar. A ministra de Kirchner
Apesar de a primeira reação dos mercados ter sido de nervosismo e temor, a saída de Roberto Lavagna do Ministério da Economia da Argentina não produzirá necessariamente nenhuma crise no curto prazo, nem alterará de maneira significativa, para melhor ou para pior, as tensas negociações comerciais com o Brasil. Mas a escolha, pelo presidente Néstor Kirchner, da economista Felisa Miceli, que ocupava a presidência do Banco de la Nación, para substituir Lavagna deixa dúvidas sobre o futuro. Kirchner apenas tolerava Lavagna em sua equipe. Por pressão de seu antecessor, Eduardo Duhalde, ao assumir a presidência, aceitara mantê-lo no Ministério da Economia. Com a vitória que obteve sobre seu antecessor na eleição de outubro, Kirchner viu-se em condições de reorganizar seu ministério, dando-lhe o perfil que sempre desejou. A reorganização implicava a substituição de seu ministro da Economia, cujos gestos de independência incomodavam o presidente. Lavagna tinha um histórico que lhe conferia autoridade moral para agir desse modo. Quando assumiu o cargo em abril de 2002, a Argentina vivia sob o impacto do confisco das contas bancárias decretado pelo ex-ministro Domingo Cavallo, a pobreza atingia mais da metade da população, a maior moratória da história havia sido declarada apenas cinco meses antes e o país, criticado por credores de todo mundo, tinha grandes dificuldades para restabelecer o diálogo com o FMI e com a comunidade financeira. O câmbio disparava e a população temia o retorno da hiperinflação. O legado de Lavagna, embora não invejável, é bem melhor do que o que recebeu. Felisa Miceli foi aluna de Lavagna na universidade e trabalhara numa empresa privada de consultoria constituída pelo ex-ministro. Curiosamente, foi Lavagna quem a apresentou a Kirchner, de quem em seguida ela se tornaria fiel aliada. Com sua posse, gestos de independência do Ministério da Economia devem desaparecer. "Sou um soldado kirchnerista", declarou há algum tempo a nova ministra. É isso que Kirchner quer. Para reforçar seu domínio sobre a Pasta da Economia, a profissionais com maior prestígio nos meios político, empresarial e acadêmico - como Adolfo Prat-Gay, ex-presidente do Banco Central, e Martín Redrado, ex-vice-ministro do Exterior e sucessor de Prat-Gay - Kirchner preferiu alguém menos conhecido, mas fiel, como é o caso de Felisa Miceli. É essa peculiaridade da escolha da nova ministra que gera dúvidas sobre sua gestão. Apesar da melhora do quadro econômico da Argentina, que conseguiu renegociar sua dívida externa e retomou o crescimento, há problemas sérios que exigem ação firme do Ministério da Economia. Como Miceli os enfrentará? O primeiro deles é a inflação. Em sua entrevista de despedida, Lavagna disse que a evolução dos preços está dentro do previsto. Não parece coisa preocupante. Mas a previsão é a de que a inflação em 2005 ficará em torno de 11%, sem garantias de que cairá em 2006. Segundo jornais argentinos, a nova ministra não acredita que uma alta dos juros seja suficiente para conter a inflação. Além disso, juros altos esfriariam a atividade econômica e isso poderia ser, na opinião de Miceli, ainda pior do que a inflação. Se se mantiver fiel soldado de Kirchner, o risco é de que a nova ministra adote medidas não convencionais para conter a inflação, como alguma forma de controle ou negociação de preços, cujos efeitos, como mostram exemplos não muito remotos na Argentina e em outros países da região, podem ser desastrosos para a economia. Há ainda o problema, que tratamos em editoriais nos últimos dias, da dívida com organismos internacionais e com credores privados que vence no ano que vem e para a qual o governo Kirchner não consegue gerar superávits primários suficientes. Por fim, a Argentina precisa ampliar sua capacidade de produção para eliminar gargalos que poderão comprometer o abastecimento doméstico e pressionar os preços. Mas isso requer investimentos, os quais, por sua vez, dependem de confiança do setor privado na política do governo. É essa confiança que Felisa Miceli precisa conquistar.
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Entrevista:O Estado inteligente
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quarta-feira, novembro 30, 2005
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