"Os neobolcheviques tratam o caso da
cassação de Dirceu como uma reprodução
do maior drama da cristandade – o martírio
de Jesus. Tem até ressurreição"
O regime stalinista (ateu) acreditava poder mudar a história na União Soviética. Reescrevia os fatos e adulterava as fotos. No Brasil, os neobolcheviques tropicais (cristãos) estão procurando adulterar a vida e os feitos do ex-ministro José Dirceu. Em outdoors, abaixo-assinados de intelectuais, em artigos de jornais, os companheiros do deputado o apresentam de forma inconsciente como uma reencarnação de Jesus, o revolucionário que foi sacrificado por sua causa.
No processo de adulteração histórica da figura de José Dirceu, seus apóstolos inventam um Dirceu que não existe e escondem o Dirceu real.
O Dirceu real será acusado no relatório final da CPI dos Correios de ter sido o chefe das operações criminosas investigadas por seus integrantes. Aí entram as transações de Marcos Valério com empresas estatais para roubar o Erário, os falsos empréstimos bancários para o caixa dois do PT e o pagamento do mensalão para deputados votarem a favor do governo. O relatório final da CPI pode apontar até doze crimes atribuídos à quadrilha. Mais do que isso, a CPI deverá pedir o indiciamento policial de José Dirceu.
Os intelectuais e jornalistas que militam em favor de Dirceu não se referem a nenhum desses crimes apontados pela CPI. Não tocam no assunto. O que importa, segundo dizem e escrevem, é o Dirceu simbólico, o Dirceu revolucionário, o Dirceu que não existe.
Sabe-se que José Dirceu foi preso num congresso estudantil em 1968 e da cadeia saiu direto para o exílio em Cuba. No Brasil, antes da viagem, era um líder estudantil que não podia ver caixote sem subir e fazer discurso. Mas era só isso. Em Cuba, fez curso de espionagem e lá ficou por uns cinco anos. Em 1975, Dirceu voltou clandestinamente ao Brasil e foi se esconder numa pequena cidade do Paraná, disfarçado de comerciante judeu – e lá ficou inativo até 1979, quando o presidente João Figueiredo lhe deu o perdão da anistia. Só aí, quando não havia mais perigo à vista, Dirceu saiu do esconderijo. A ditadura estava desmoralizada, a luta armada se acabara muitos anos antes e Dirceu achou sua opção natural: virar quadro do PT.
Sem perceber a ironia da situação, os apoiadores do Dirceu revolucionário tratam o caso da cassação do deputado como uma reprodução do maior drama da cristandade – o martírio de Jesus Cristo, naquelas horas terríveis entre o Monte das Oliveiras e o Gólgota.
A saga de Dirceu começa com a fase do martírio. Segundo os intérpretes desse curioso Evangelho brasileiro, Dirceu foi perseguido porque tinha uma causa. Pregava a aplicação de um modelo alternativo de governo para promover a inclusão das classes populares. Destacou-se demais e provocou ciúmes e retaliação. Nunca esteve tão exausto. Dorme pouco, come mal, viaja sem parar, buscando apoio contra a cassação de seu mandato. Suplício dos suplícios, "será cassado pela própria democracia que ajudou a criar", escreveu um dos admiradores. Dirceu estaria agora na fase da expiação. Com tanto sacrifício, já pagou pelo que fez. Chega-se por fim à redenção. Sem provas contra ele, Dirceu "está ganhando a batalha política". Faltaria apenas a ressurreição. Um colunista amigo providenciou esse desfecho. "Se cair agora, Dirceu cairá de pé, para levantar-se depois." Agora, só falta andar sobre as águas.