DORA KRAMER
Na prática, Supremo firma precedente que retira da Câmara atributo político de julgar A solução proposta por alguns deputados no calor da contrariedade com o Supremo Tribunal Federal, de votar o pedido de cassação de José Dirceu na marra, ao arrepio das decisões judiciais, é tudo menos uma solução.
Configura, antes, um problema ao qual o presidente da Câmara, Aldo Rebelo, obviamente não dará abrigo.
A situação de impasse continuado provocada pelos repetidos recursos de José Dirceu não pode, a não ser por exacerbação indevida de ânimos, ser atribuída ao comprometimento político-partidário da Corte nem ao desejo deste ou daquele magistrado em privilegiar o deputado, seja por razões de amizade ou por obrigações devidas ao presidente da República.
Tal raciocínio serve à indignação momentânea e, é verdade, facilita sobremaneira o suposto entendimento das coisas. Cria contrapontos bem nítidos e fantasia a realidade de preto e branco.
Em compensação, agride os fatos, alimenta convicções a respeito da falência completa das instituições e privilegia aquela visão desabonadora a respeito de tudo e de todos tão ao gosto do PT de ora e outrora. Supor que os ministros do Supremo Tribunal Federal estejam divididos em ambiente de Fla-Flu contra e a favor de José Dirceu, no intento preciso de desmoralizar o Parlamento no seu direito (e dever) de julgar se o par feriu ou não um dos preceitos indissociáveis do exercício parlamentar, o decoro, obrigaria a utilização da mesma ótica para a avaliação de todas as decisões passadas, presentes e futuras do tribunal.
Incluindo aquelas com as quais os reclamantes de agora concordam.
Isso não significa, entretanto, que não existam deformações no processo.
Não relativas à iniciativa do deputado José Dirceu de "procurar os seus direitos". Não obstante denote desprezo e animosidade às regras do Parlamento, a forma da defesa é escolha do réu e de seus advogados. O problema está na separação de atributos de um e de outro Poder. Sob a alegação de que há um direito em jogo, à medida que os recursos vão ficando mais e mais referidos nos detalhes processuais, o Judiciário se imiscui nos ritos de explícita e exclusiva competência do Legislativo.
Definido que um deputado não deixa de sê-lo quando no cumprimento de outras funções, a menos que renuncie, como fez Henrique Meirelles para assumir a presidência do Banco Central antes do cargo adquirir status de ministro, o bom senso indica que nada mais caberia à Justiça decidir a respeito dos procedimentos internos da Câmara.
Mas o que se vê agora é a discussão de cada passo dado pelo Conselho de Ética, numa inequívoca interferência no andamento dos trabalhos de uma instância com critérios próprios, conhecidos e, sobretudo, já aplicados em outros casos cuja validade não caberia agora contestar.
Independentemente do voto do ministro Sepúlveda Pertence na semana que vem, seja qual for a decisão final, o simples fato de o Supremo considerar atributo seu determinar a ordem de depoimentos de testemunhas no Conselho de Ética já é uma distorção que, firmado o precedente, tornará inócua a existência daquele instrumento dentro do Poder Legislativo.
É como se o Judiciário - sob a justificativa de que lhe cabe responder à provocação (no bom sentido) do autor da ação - se apropriasse de funções de um outro Poder institucionalmente equivalente. Da maneira como as coisas estão sendo conduzidas, na prática o Judiciário acaba se sobrepondo a tudo o mais.
Se ele pode influir em todas as fases, a qualquer tempo, de um processo de julgamento de decoro parlamentar, não há mais sentido em manter esse procedimento ao encargo do Legislativo, porque ele perde a sua natureza política para assumir um caráter estritamente jurídico.
O ministro Marco Aurélio Mello alega, em defesa da nova tomada de depoimentos, que está em questão não o mandato de um deputado, mas o princípio do contraditório. Ora, ninguém contraditou mais as acusações que o deputado José Dirceu.
Foram dadas a ele todas as oportunidades, aproveitadas de acordo com seu interesse. Algumas deixou de lado exatamente para sustentar os recursos à Justiça.
A negativa das evidências e a aceitação exclusiva do conceito jurídico transfere ao Judiciário a missão de fiscalizar a conduta dos parlamentares e autoriza todos eles, a começar dos que estão na fila do Conselho de Ética da Câmara, a fazer uso dos mesmos recursos e contar com iguais prerrogativas.
Em contrapartida, o instituto do julgamento interno se esvairá ao ponto da inanição e, a pretexto de fornecer lições sobre o estado de Direito, o Judiciário estará dando ao País uma demonstração de menosprezo ao sentido ético do exercício de uma delegação popular.
O exemplo é batido, mas é clássico: Fernando Collor teve seu mandato interrompido pelo Congresso por convicção formada a partir de um conjunto de evidências, mas foi absolvido no Judiciário por falta de provas. Alguém acha que Fernando Collor foi vítima de injustiça e arbitrariedade? Só ele mesmo e agora, por analogia e coerência, também José Dirceu.