o globo
Faz quase dois anos escrevi aqui contra a lei que deverá proibir o comércio de armas no Brasil. Fico meio (serei moderno e vou usar essa palavra; todo mundo usa e preciso ser moderno ou perecer) sacaneado, quando me põem no bolo dos "babacas da mídia", que só defendem direitos humanos para criminosos e trabalham pela aprovação de leis como essa do desarmamento. Nem sei que babacas são esses, eis que babacas há em toda profissão ou condição social, mas escrevi aqui contra o tal desarmamento. Precisava até de mais espaço do que o muito que já me dão, de forma que não é para poupar trabalho que reproduzo três parágrafos daquele texto. É porque iria os repetir, com outras palavras. Escrevi o que vai grifado abaixo:
"Em primeiro lugar, o que parece não ter importância alguma, sou contra a violência. Em segundo lugar, menos um pouco desimportante, estamos há muito tempo em falta de mocinhos, em todos os níveis de governo. E, agora sim, importante, já vivemos nessa situação há muito tempo. Somos cidades de faroeste, diferençadas apenas por detalhes, como carros e motocicletas em vez de cavalos, e pela ausência de coldres recheados à mostra. De resto, basta pensar e ver que, em cidades onde morre mais gente baleada do que em países em guerra, só podemos ser uma espécie de faroeste. Já nos acostumamos, e por isso mal notamos. Quem nota, e pode, vai morar em fortalezas ou complexos penitenciários, eufemisticamente rotulados de 'condomínios', mas na verdade com mais segurança do que a velha Alcatraz, embora inútil pois às vezes os próprios agentes dessa 'segurança' estão por trás ou ao lado de sua violação. Quem pode dá no pé e vai morar em algum país no qual não seja necessário rezar sempre que um filho vai à rua e um celular para cada um desses filhos não é considerado equipamento de segurança indispensável. Quem chega de fora fica assombrado em ver o número de grades com as quais tudo é cercado, de edifícios a praças públicas, como se fosse normal o cidadão viver por trás de grades, enquanto o pau come solto lá fora."
Reli o texto inteiro (é de julho de 2003, para quem quiser saber) e poderia reproduzi-lo todo, porque ainda é pertinente, mas isto não se faz, parece que se está querendo passar a perna no jornal. Os dois parágrafos acima só faltam acrescentar que sou pessoalmente contra armas e brigas, nunca tive nem tenho arma e não represento ninguém, só minha consciência mesmo. E não estou só na minha posição, que é a de muita gente boa e insuspeita por aí, segundo leio na Internet e ouço falar. E então — perdão, leitores; perdão, editores — reproduzo outro parágrafo:
"Para resolver isso, que cresce como um câncer em metástase desenfreada, os governos oferecem palavrório e legislação. Devemos ter as leis mais avançadas do mundo e vêm vindo mais. Por exemplo — e chego finalmente ao ponto mais polêmico —- agora o plano é desarmar os cidadãos, proibindo terminantemente o porte de armas, mesmo que exclusivamente dentro de casa. Não tenho arma e sou visceralmente contra seu uso, mas não sou maluco. O cidadão que respeitar a lei não terá mais arma em casa, ou nem mesmo no sitiozinho, onde relaxar virou privilégio de quem pode contratar seguranças e ter cachorros ferozes por tudo quanto é canto. Mas o bandido? Ah, este estará de agora em diante perdido, porque o novo dispositivo legal cerceará sua ação criminosa. Verdade que terá certeza de que poderá entrar na casa de qualquer cidadão ordeiro, porque esse cidadão não contará com uma arma para se defender. Mas o bandido poderá ser facilmente vencido. Basta que se guarde um exemplar da nova lei para mostrar ao assaltante: 'olhe aí, diz aqui que é proibido o porte de armas.' 'Ah, desculpe', dirá o assaltante, pedindo licença para`se retirar e saindo sem bater a porta. 'Foi mal, eu não tinha sido informado.' E não duvido nada de que, se o cidadão tiver em casa um revólver, mesmo que não dê um tiro no assaltante, seja preso e processado inafiançavelmente, enquanto o assaltante, réu primário, servirá pena de dois anos em regime semi-aberto."
Como desculpas renovadas, acrescento o pouco que resta acrescentar. O governo ataca de novo um problema complexo e cujo buraco está a léguas mais embaixo com os instrumentos estatais mais comuns entre nós: uma lei (ou medida provisória) moderníssima; uma ou várias comissões, todas com direito a jetons, passagens etc.; recadastramento de categorias diversas; anistia para quem não pagou o que devia; cala-bocas variados (cestas básicas, bolsas-escolas e outras reações tópicas que são chamadas de "programas sociais", curiosa designação a algo que mantém corrupção, clientelismo e dependência de esmolas). Uma dessas pode ainda não ter aparecido, mas aparecerá.
Maconha e cocaína também não podem ser comercializadas (os gerúndios enlouquecidos e os verbos em izar vão terminar por nos afogar num mar de cretinismo invencível — nem ver mais as pessoas vêem, só visualizam) e, no entanto, a depreender do que lemos nas gazetas, compram-nas quem quer e onde quer, até mesmo em domicílio e sendo talvez possível o uso de cartões de crédito. Desta forma, só posso crer que se trata de mais uma armação da Cen-tral Brasileira de Trambicagem, a fim de estabelecer as futuras prósperas "bancas-de-fogo", que se juntarão às já abundantes bocas-de-fumo. Armas não se poderão comprar legalmente. Ilegalmente, claro que sim, é para isso que existe a lei. Triste situação a do bandido, que só o faz sofrer e a nós ter pena. Já pensaram no peso na consciência dele como portador ilegal de arma? É de matar qualquer um — só resta assaltar para esquecer.
Entrevista:O Estado inteligente
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