Entrevista:O Estado inteligente

sábado, outubro 22, 2005

veja Roberto Pompeu de Toledo

Roberto Pompeu de Toledo
Anedota de brasileiro

O referendo das armas foi um exercício de
sair
do nada para chegar a lugar nenhum

Os brasileiros foram convocados a participar, neste domingo, 23 de outubro de 2005, de uma consulta popular sobre coisa nenhuma. Trata-se de algo possivelmente inédito no mundo. Discutiram-se durante semanas, com paixão, questões já previamente resolvidas. Tomaram-se partidos que não vinham ao caso. Ninguém, em posição de fazê-lo, se dignou a esclarecer o fato singelo de que o que estava em jogo era nada. A pergunta a que os brasileiros foram intimados a responder, "Deve o comércio de armas ser proibido?", chocava-se contra um obstáculo lógico: o comércio de armas não pode ser proibido. Ele estava garantido pela própria lei que determinou o referendo.

Para quem não está entendendo, voltemos aos pontos de partida desta história. No dia 22 de dezembro de 2003, foi sancionada pelo presidente Lula a Lei nº 10 826, apelidada de Estatuto do Desarmamento. Esse texto, regulamentado pelo Decreto nº 5 123, de 1º de julho de 2004, determinou, ao cabo de longos e acirrados debates no Congresso, quem pode possuir ou portar armas, quando, onde e em que condições. O conjunto de disposições então adotado não desmerece o nome de Estatuto do Desarmamento. Dificultou, de modo considerável, a aquisição e o uso de armas de fogo no país, para quem quer fazê-lo pelos meios legais.

Eis um primeiro ponto a reter: foram essa lei e o decreto que a regulamentou, ambos aprovados e já em vigor, que determinaram quem pode possuir ou portar armas. O referendo nada tem a acrescentar ao assunto. Podem portar armas, isto é, levá-las consigo, integrantes de oito categorias diferentes de corporações, das Forças Armadas à Receita Federal, passando pelas polícias e as empresas privadas de segurança. Cidadão particular não pode. Podem possuí-las, desde que as mantenham em casa ou no trabalho, todos aqueles que comprovem "efetiva necessidade" disso, e desde que tenham no mínimo 25 anos, não apresentem antecedentes criminais e passem nos testes de "aptidão psicológica" e de "capacidade técnica para o manuseio de armas de fogo", entre outras exigências. Se tudo isso já está decidido, não caberia discutir, no quadro da campanha do referendo, como foi feito à exaustão, se os cidadãos devem ou não se armar, ou se isso ajuda ou atrapalha a defesa contra os criminosos. O Congresso já o decidiu por nós, como aliás é de sua obrigação – e decidiu, dadas as múltiplas exigências que estabeleceu para o cidadão comum ter acesso a armas, que elas são nocivas, tanto à segurança coletiva quanto à individual.

Ao eleitorado, acompanhada de boa dose de absurdo, foi deixada a incumbência de decidir sobre a inclusão, no Estatuto, da proibição do comércio de armas. Proibir a compra e venda, é isso? Mas como, se a lei faculta que toda uma gama de gente, dos integrantes das Forças Armadas ao cidadão que comprove "efetiva necessidade", as possua? Como podem possuir sem comprá-las? Na verdade, se a proibição do comércio fosse para valer, a vitória do SIM significaria a revogação de todo o restante da lei. Ficariam prejudicados os numerosos artigos que cuidam de quem pode ter armas, e em que condições. Se não se pode comprar, de que adianta contar com a permissão para ter? A menos que o governo desejasse, deliberadamente, jogar uma parte da população no mercado negro. A loucura não chegou a tanto. A realidade singela é que não há como proibir, pura e simplesmente, a compra e venda de armas, o que significa dizer que, mesmo com a vitória do SIM, as pessoas autorizadas a possuí-las, inclusive o cidadão avulso tomado da tal "efetiva necessidade", continuarão podendo comprá-las. Em direito vige o princípio de que quem pode o mais pode o menos. Quem pode ter armas claro que pode comprá-las. E quem pode comprá-las claro que pode também comprar munição para alimentá-las.

Para que serve então o referendo? Vá lá, façamos um desconto: não é que ele seja completamente sobre coisa nenhuma. Mas também não é sobre o que o eleitorado foi induzido a pensar. O que está em jogo é o modo como serão comercializadas as armas. Se devem ser mantidas as atuais lojas ou se deve ser instituído um novo sistema de vendas. Essa é a única e escassa questão. Vencendo o NÃO, continuam em operação as lojas atualmente existentes. Vencendo o SIM, abre-se um leque de opções, para futura deliberação. A primeira é a manutenção das lojas, reestruturadas. A segunda é a venda em departamento do Exército ou da Polícia Federal. A terceira é a compra direto das fábricas. A pergunta certa, para que o referendo chegasse com clareza ao eleitorado, deveria girar em torno da botica da preferência do freguês, mas lá isso é coisa que se pergunte ao pobre do eleitor? Abusou-se da paciência do coitado. Levaram-no a pensar no assunto à toa. Para piorar, fizeram-no enfrentar fila e perder a praia. E produziu-se, com um referendo que parte do nada para chegar a lugar nenhum, mais uma anedota de brasileiro. "Sabe da última?", perguntarão, pelo mundo. E então rirão muito, rirão de sacudir a barriga e de sair lágrima dos olhos.

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