O GLOBO
Poucas vezes testemunhei tamanha confusão em relação a um problema de interesse geral como nessa história do Sim ou do Não para um artigo do chamado Estatuto do Desarmamento. Concluí, em visão talvez simplória, que não iam desarmar os bandidos, que iam fomentar toda uma economia delinqüente em torno do tráfico ilegal de armas e munições e que tais circunstâncias me justificariam dizer "não" à diabólica pergunta a que vamos ter de responder. Assisti a discussões de pessoas esclarecidas, que não conseguiam avaliar o significado de um "sim" ou "não" na hora do voto. O que o "sim" significava para uns queria dizer o contrário para outros. Vi gente quase sair no tapa por causa disso e eu mesmo me peguei cheio de incertezas bem na hora em que começava a achar que tinha certeza.
Suspeito que a situação não mudou muito e que tem uma porção de gente sem idéia do que fazer. Não sei por quê, acho que um número bem significativo de pessoas prefere não se arriscar e, assumindo o ar altivamente ultrajado de quem é forçado a votar no que não quer votar, do jeito que não quer votar e na hora em que não quer votar, vai anular o voto. Não sabe bem em que redundará esse ato, mas pelo menos não terá votado para o lado do Mal. Durante toda essa estranhíssima campanha, temos vislumbrado o Mal e o Bem se digladiando nos ares, o Mal disfarçando suas feições bestiais por baixo de maquilagens querubínicas e o Bem se apresentando tão burramente que fica a cara do Mal. Aí o indivíduo cauteloso dá uma — desculpem, mas eu não vou sofrer sozinho, se posso ter companhia — de Pilatos e anula o voto.
Entrei na do Mal de primeira, fui logo declarando meu voto, que, depois de profunda investigação, suponho que é o Não. Pelo menos acho que o resultado que desejo obter é mais servido pelo Não. Houve companheiros de boteco — e olhem que eu ando na base do guaraná há anos — que chegaram a me convencer temporariamente do contrário e comenta-se à boca pequena que Carlinhos Judeu faturou uma grana federal na bolsa de apostas que se formou em torno das altas questões referendais. Acho, naturalmente, que não sou do Mal, sou do Bem. E que, votando no Não, estou votando no Bem. Mas compreendo que haja quem ache precisamente o contrário, que é que eu vou fazer — só disponho de uma consciência e essa é a opinião dela.
Tenho por acaso visto anúncios de ambas as campanhas na tevê. Ambas, a meu ver, mentirosas ou enganosas. E a do Sim vem mais recheada de babaquices sobre a condição humana do que esses arquivos de slides que nos mandam pelo computador e que nos obrigam a limpar o monitor do melado que escorre depois de os havermos visto. Às vezes, o pessoal do Sim, com seus ares santimoniais, parece os doze apóstolos, que, com essa votação, iniciam uma revolução nos corações e mentes do Brasil e do mundo.
Por último, circula na Internet algo que transforma todo mundo em trouxa, se verdadeiro, como parece ser. Um e-mail, cujo signatário original ignoro quem seja porque apareceu sem assinatura bem umas dez vezes, chama a atenção para o fato de que não se trata de desarmamento nenhum. Trata-se apenas de um único dispositivo de uma lei que já está em vigor. A impressão que se tem, ouvindo-se o pessoal do Sim, é de que o voto que ele quer significa a adoção do chamado Estatuto do Desarmamento. Este, com todas as restrições à compra e uso de armas de fogo, já está em vigor. Não há mais nada a votar, apesar da clara impressão contrária que às vezes se dá.
Exceto a questão da comercialização de armas e munições no Brasil. Isto deixaram para perguntar ao povo, numa forma necessariamente confusa e tornada ainda mais complicada pelos interesses em torno delas. Diz o e-mail que mais de 90 por cento das armas leves produzidas no Brasil são exportadas e que se trata de um mercado onde somos realmente uma potência, com armas adotadas pelos exércitos de praticamente todo o mundo. Pois bem, diz o e-mail (não sei se é verdade, estou apenas partilhando da confusão com meus compatriotas, é um direito que assiste a todos), a lei internacional prescreve que nenhum país poderá exportar o que não puder comercializar internamente. Então se trata simplesmente de um golpe econômico. Com a aprovação desse dispositivo, não só continuarão a vigorar as restrições já observadas no Brasil de hoje como o país não poderá mais exportar e perderá mercados.
Esplêndido, dirá o pessoal do Sim, tanto melhor para o Bem, porque assim minguará a indústria de armas, menos armas serão produzidas e o mundo caminhará para a utopia que ainda tantos enxergam. Ouso discrepar. Teremos, com nosso votinho no Sim, dado o mercado de armas, pois o mercado é como a natureza: abomina o vácuo. Mercado não pode ver vácuo. Existindo demanda, existirá fornecedor, não importa quão difícil seja a situação. Há pessoas que ficam logo histéricas e vendo a cara do próprio Satanás na gente ao falarmos nisso, mas uma coisa é o que deve ser (no que todos concordamos) e uma coisa é o que é. Já aí discordamos, pelo menos em termos de estratégia, pois considero o Sim um belo passo à ré andado pelo Brasil e o começo de uma era de um primeiro ano de róseas estatísticas — e como elas têm sido bem manipuladinhas e falsificadinhas em ambos os lados, hein? — e nos anos seguintes da cada vez mais irrefreável metástase de uma máfia implacável e cruel, que não só não acabará com as mortes por armas de fogo como criará focos de bandidagem e criminalidade imprevisíveis. E nós no meio, brigando, xingando, julgando, nos inimizando, a troco de exercermos o papel de peões onde quem manda são os enxadristas, enxadristas esses — perdoem por favor o compreensível tom de ficção mal-assombrada — que nem sabemos quem são.
Entrevista:O Estado inteligente
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