Convidado a dizer o que pensava do caixa dois, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, sucumbiu a um raro acesso de sinceridade. "Isso é coisa de bandido", resumiu. Se gosta do emprego, é bom mudar de idéia. Não pensam assim o chefe de governo, o vicepresidente da República e o novo comandante do PT.
Na delirante entrevista concedida em agosto na França, Lula informou que o caixa dois é, digamos, um defeito de fabricação do Brasil. "O PT só fez o que, infelizmente, todos os partidos sempre fizeram", garantiu. Há dias, em meio a comentários sobre cassáveis de estimação, José Alencar desandou de vez.
"Eu penso que pode cassar, mas tem que cassar todo mundo", radicalizou o vice. "Um companheiro de partido falou: 'Lembra dos santinhos do Ildeu nas eleições de 1998?'. Os santinhos foram para a minha campanha para o Senado e não foram declarados. Então, o meu mandato tem de ser cassado". Na Câmara, ganhou apelido novo: "Presidente 2".
Ricardo Berzoini decidiu que sua primeira tarefa como presidente eleito do PT seria desmatar a trilha mapeada por Lula e Alencar. Ao longo da semana, avançou a golpes de foice pelo caminho que o levaria a teorias capazes de explicar que o PT não cometeu nem pecados veniais.
Incumbido de recuperar a Previdência Social, Berzoini fabricou a maior fila de aposentados do mundo. Encarregado de provar que caixa dois é bobagem, que não houve roubalheira nem casos de corrupção no governo, ampliou o acervo de tolices até perder-se na mata dos trapalhões.
Entrevistado pelo E st ad ão , Berzoini declarou que "o caixa dois é do nosso folclore político". Admitiu que se trata de "uma ilegalidade", mas a prática sempre existiu e seguirá existindo – "no PT e fora dele" – até que seja instituído o financiamento público das campanhas eleitorais.
Assim, o desastrado Berzoini reconheceu que nunca houve "o partido da ética na política". Também desafiou a Justiça Eleitoral ao confessar que a lei será atropelada nas eleições de 2006. Enfim, apontou a estratégia traçada pelo governo e pelo PT para safar-se do Pântano do Planalto: agarrar-se à falácia de que ninguém roubou, não há corruptos. Todos ficaram no pecado venial.
"Há caixa dois com corrupção e sem corrupção", diria depois à Fo- lha o inventivo teórico da bandidagem. "Corrupção é ter um relacionamento com o empresariado que condicione contribuições de campanha a decisões administrativas". Pois foi isso que o PT fez.
Isso e muito mais. O valerioduto não poderia financiar campanhas em 2003: não houve eleições, mas jorrou dinheiro. Em 2004, um PT em situação falimentar repassou milhões a parceiros de aluguel. Lavanderias de dinheiro sujo foram instaladas no exterior. Esses e outros crimes foram comprovados pelas CPIs, ou estão perto do esclarecimento. É inútil Berzoini posar de acusador. O réu é o PT.
No espantoso "Improviso da Urucubaca", um dos melhores momentos do palanqueiro incontrolável, o Cabôco foi informado por Lula de que, além de brasileiro, "Deus é carioca e marinheiro". O Cabôco deduziu que Lula só queria agradar à platéia e afagar a cidade onde discursava. Quer saber por que nenhum assessor lembrou ao chefe que não estava no Rio. Estava no outro lado da Baía de Guanabara. Em Niterói.
A culpa é da vítima
Além da alegria exibida por todo monoglota autorizado a dispensar intérpretes, o presidente Lula mostrou em Portugal o que Nelson Rodrigues chamaria de saúde de vaca premiada. Apesar da agenda superlotada, encontrou tempo e energia para também falar de vacas pouco viçosas. Essas pastam em Eldorado, município de Mato Grosso do Sul onde se localizou um foco de febre aftosa.
Segundo dados oficiais, foram liberados até terça-feira apenas R$ 555,2 mil dos R$ 35,3 milhões prometidos pelo orçamento de 2005 para ações de erradicação da doença. O ministro Roberto Rodrigues (foto) passou o ano alertando para o perigo e pedindo o dinheiro que Lula garante nunca ter faltado. "O principal responsável é o proprietário do rebanho", decidiu. Simples: a culpa é da vítima.
Santo André já provocou sete silêncios
Sorrisos convinha evitar. Mas alguns dirigentes do PT não conseguiram conter suspiros de alívio ao saberem da sétima morte vinculada de alguma forma à tragédia de Santo André. Agora foi a vez do legista Carlos Delmonte Printes, que examinou o corpo do prefeito assassinado Celso Daniel. Morto aos 55 anos, Printes não poderá depor na CPI dos Bingos. Falarão por ele o laudo que produziu e as revelações feitas em setembro ao Ministério Público, algumas reproduzidas no Programa do Jô.
Esse legado, omitido em 2002 por burocratas intimidados pelos petistas, atesta que Celso Daniel não foi vítima de um crime comum. "Antes de morrer, ele sofreu torturas brutais", contaria o legista três anos depois. "Isso só acontece quando criminosos querem informações". O prefeito de Santo André, laboratório onde se criou o esquema do mensalão, sabia muito.
Sete silêncios suspeitos. Mas sobra munição à CPI.
A taça mora na filosofia
O troféu vai para Marcos Nobre, filósofo da Unicamp, pela declaração à Folha de S.Paulo na edição do dia 13:
"O fato de o PT ter gerido um governo como se fosse um partido e de ter gerido um partido como se fosse um sindicato criou um curtocircuito na política brasiliense cujo resultado é o Roberto Jefferson".
Ah, bom. Agora a gente conseguiu entender tudo.
Ouçam a voz rouca da rua
A coluna registra, endossa e repassa três reivindicações encaminhadas pelos leitores:
1. Onze imploram que – com ou sem transposição das águas, com ou sem jejum de bispo – a imprensa pare de chamar o Rio São Francisco de "Velho Chico".
2. Nove sugerem à senadora Ideli Salvatti que diga aos depoentes da semana, ligados ao episódio da compra de votos na Era FH, o que não disse aos companheiros mensalistas: vender voto é muito feio.
3. Três exigem a anulação da primeira briga entre Inocêncio de Oliveira e Arlindo Chinaglia e a realização de outra – de verdade, com socos e pontapés. Também pedem ao juiz Aldo Rebelo que não volte a gritar "pelo amor de Deus". Pega mal para um comunista.
Comissão de Anistia indeniza delator
Infiltrado numa lista de 78 favorecidos pela sempre perdulária Comissão de Anistia, o diplomata Jacques Claude Marie François Michel Fernandes Vieira Guilbaud viveu em 2003 o ano da redenção. Foi reintegrado ao Itamaraty, promovido a ministro de Segunda Classe e passou a ganhar salários mensais de R$ 8.120,84. Fora a indenização: embolsou exatos R$ 530.778,36. Uma bolada.
Foi o mais detestável presente distribuído pelos condutores desse delirante trem pagador. Na França ocupada durante a Segunda Guerra Mundial, seu pai servira aos alemães como aplicado colaboracionista. O velho Georges se orgulharia da devoção à ditadura militar reafirmada pelo filho até 1980.
De 1974 a 1975, Guilbaud foi subchefe da Assessoria de Documentação de Política Exterior (Sedoc), unidade instalada em Brasília.
Numa sala protegida por grades e portas de aço, liderava o bando de especialistas em seguir e delatar diplomatas suspeitos de inclinações esquerdistas. Fez bonito. Acabou premiado com a transferência, em 1976, para o Chile do general Augusto Pinochet. Homiziado na embaixada, dedicou-se a aperfeiçoar a troca de informações políticas entre as nações amigas.
O araponga do Itamaraty deslocou-se em 1977 para Lisboa. Calado, distante dos funcionários do próprio embaixador, vivia isolado com a mulher, cinco filhos e seus cães. Reportava- se diretamente ao SNI.
O decreto assinado pelo presidente João Figueiredo em 1980 formaliza a demissão de Guilbaud "a bem do serviço público, por abandono de cargo, incontinência pública escandalosa e insubordinação grave em serviço". Anabolizado por uma herança de bom tamanho, voou para a vida de rico na França. Gastou demais, virou porteiro de hotel. Assim uniformizado, teve a sorte de conhecer o sociólogo francês Alain Touraine.
Comovido com o relato que ouviu, Touraine pediu a FH, em 1997, uma ajuda àquela "vítima da ditadura". FH apurou o caso e avisou Touraine. Com a mudança de governo, Guilbaud repetiu a mentira a assessores do companheiro Lula. Desta vez colou. E o delator foi indenizado.
Intromissão indesejada
Entre as poucas novidades animadoras da crise, a melhor era o silêncio das Forças Armadas. Era. Há dias, uma nota conjunta do Clube Militar, do Clube Naval e do Clube da Aeronáutica tratou de questões políticas com o atrevimento do velho Partido Fardado.
O teor do documento até faz sentido. E só gente da reserva o assinou, como manda a lei. Mas notas do gênero sempre excitam oficiais descontentes com soldos baixos.
Numa democracia, crise é assunto para políticos – e o que define os rumos do país é voto popular. As Forças Armadas não se metem nisso.
Dão-se mal quando o fazem. Neste outubro, o assassinato do jornalista Vladimir Herzog nos porões da tortura está completando 30 anos.