Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, outubro 17, 2005

Pedro Doria A internet no centro do computador

O ESTADO DE S PAULO

doria@mac.com

Permitam-me que lembre: esta história parece velha - e é. Estamos em 1996, São Francisco, Califórnia. Em cada outdoor aparece um endereço web. Como se um www ponto algo fosse normal. Quem quer liga para a telefônica e, no dia seguinte, instalam banda larga em casa.

A São Francisco de 1996 era completamente diferente de todo o resto. O futuro era lá: uma velha cidade jesuíta espanhola, misto de arquitetura contemporânea, chinesa kitsch, Santa Teresa carioca, casinhas britânicas do século 19 e distrito industrial paulistano.

Entre os vários galpões do bairro velho, havia um com porta de ferro. Quem entrasse, subia um lance da escada metálica, as paredes pintadas com demãos de cal e, num repente, o segundo andar era todo rosa. Não um rosa qualquer; um rosa lisérgico, vivo, ácido. Era uma parede rosa e uma recepcionista bonitinha com três brincos e piercing no supercílio. Além daquela porta funcionava a redação da Wired.

A Wired de 1996 não era como a de hoje - a revista ficou como todas as outras. Mas, na época, ela era a Bíblia da cultura online que San Francisco e o Vale do Silício em volta estavam inventando, exportando.

No galpão aberto além da porta, as mesas enfileiravam-se com Macintoshes e PCs espalhados de forma aleatória. Editores, repórteres e estagiários distribuíam-se sem que a hierarquia fosse clara e todos estavam ligados à web. Nenhuma redação no Brasil era como aquela: plugada na rede ficava uma gente que podia usar terno, gravata e cabelo convencional, mas também havia cortes moicanos, piercings em nacos distintos de pele, cavanhaques ruivos, camisetas pintadas.

A estética da São Francisco de 1996 que a Wired divulgou está nas ruas de qualquer cidade grande. Assim como os wwws estão nos outdoors. Aquele futuro espalhou-se. Mas, em 1996, o grande assunto na redação, que todo mundo contava com ares de novidade, a descoberta mais recente, é que a web não era só uma aplicação dos computadores. A web era uma plataforma.

Windows é uma plataforma. É uma coisa que se põe no computador e em cima da qual rodam os programas. Um editor de texto ou de imagem, um programa de e-mail, uma planilha eletrônica. O que integra aquilo tudo, o que faz o conjunto funcionar de forma uniforme é a plataforma Windows - mas a web não parecia uma plataforma. A web eram páginas escritas, a web era uma biblioteca indexada mais ou menos pelo Yahoo!, pelo Lycos, pelo Altavista.

É que em 1996 não havia o Google. E, mesmo quando surgiu o Google na virada do século, ainda assim o Google era só um indexador melhor do que os outros. Naquela época, a web fazia parte da internet, mas havia outras coisas na rede: FTP, Gopher, Usenet. Hoje, parece, a web é a internet. E a web não é apenas uma biblioteca, a biblioteca é parte dela. Em algum momento, a web virou uma plataforma, um ambiente no qual as coisas são feitas. Leitura de e-mail, transferências bancárias, agenda, conversa com amigos, compras - quaisquer compras. Pesquisa de preço nunca foi tão fácil.

O grande motor dessa transformação é o Google. Cada mapa novo, cada gigabyte a mais de e-mail, cada mecanismo de blog, cada Orkut que o Google põe no ar traz mais gente para fora do Windows e para dentro da web. E quando a maior parte das coisas que as pessoas fazem ao computador são feitas na web, e não no Windows, o Windows fica desnecessário.

Tanto faz se o computador roda Windows ou MacOS ou Linux ou seja o que for. Se há um browser moderno para que a web funcione bem, o resto não importa.

Isso importa: quem tem o poder de ditar o padrão da plataforma que todo mundo usa define qual será a cara do futuro. O motivo de tanta gente insistir em padrões abertos é para que essa plataforma não tenha dono. Não é uma briga simples, tampouco definida. Mas é uma disputa política e econômica que tem a capacidade de interferir no dia-a-dia de cada pessoa no planeta; sim, porque mesmo indiretamente a internet já é parte essencial da vida.

Nenhum quilo de arroz chega rápido ao ponto mais ermo da Caxemira pós-terremoto sem a rede. Curiosamente, é uma disputa confinada aos cadernos de informática e às revistas especializadas. Não está na primeira página do jornal. Deveria.

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