Tereza Cruvinel - Olhos bem abertos Panorama Político O Globo 25/10/2005
O eleitorado mostrou no referendo de domingo que está a postos e bem acordado. Os políticos que tratem de decifrar as tantas mensagens embutidas na colossal votação do "Não", inimaginável semanas atrás. Obviamente a primeira delas foi de censura aos governantes, federais e estaduais, pela deficiência das políticas de segurança. Mas disseram ainda mais os eleitores, neste ensaio sobre o que farão nas urnas de 2006.
No fim de junho, quando a crise golpeava forte o PT e o governo, os defensores do "Sim" receberam do TSE o aviso de que se a regulamentação não saísse logo não seria possível realizar o referendo. O governo vislumbrou aí a chance de colocar um assunto diferente em pauta para atenuar a crise e espertamente somou forças com os defensores do "Sim". Aprovou-se a regulamentação a toque de caixa. O que não se esperava é que das urnas viesse este brado que exige mais que a propalada "humildade" diante do resultado. Alguma resposta objetiva terá que ser dada, e não apenas pelo governo federal. O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, apenas enfia a cabeça na areia quando diz que o resultado foi uma derrota para o governo Lula. Foi, sim, mas para os governadores, que ficaram longe da campanha, também.
Não é razoável pensar que dois terços dos eleitores tenham ou queiram ter uma arma. Estes devem ser uma minoria. A maioria aproveitou para manifestar outros sentimentos, a começar pela imensa indignação política em função de tudo o que a crise tem posto para fora. Disse uma espécie de "fora todos", slogan que apareceu em algumas manifestações contra a corrupção. Esperneou contra a insegurança mas rejeitou também o lero-lero político, inclusive a linguagem sofisticada da campanha do "Sim", que trocou os políticos por gente mais glamourosa. O eleitorado preferiu a retórica quase tosca da campanha do "Não", onde pessoas comuns rejeitavam a tentativa de lhes tirar um direito. Argumento falacioso, mas convenceu.
Outro aviso do eleitorado aos candidatos a 2006: cuidado com as pesquisas. Em agosto, o "Sim" alcançava até 80% de preferência. Nas últimas semanas o "Não" cresceu, mas ainda assim as pesquisas não captaram seu real tamanho. Quieto e dissimulado, o eleitorado só mostrou sua bronca na urna. O rancor eleitoral, com alguma freqüência, abre caminho para as aventuras eleitorais.
Mas restou algo de bom. O que o eleitorado mostrou é que está disposto a manifestar sua vontade sempre que for chamado a fazê-lo. Fala-se em abstenção alta mas foi pouco superior à média histórica até de eleições presidenciais. Viu-se a disposição para as consultas no calor das discussões na reta final e na disposição arregimentadora dos vencedores.
Crise minguante
Após uma semana de ausência, reencontro a crise numa curva, hesitando entre a dissipação melancólica — com algumas cassações e parcos resultados nas investigações — e o recrudescimento pela abertura de uma investigação sobre o tucanoduto mineiro.
A situação do senador Eduardo Azeredo ficou mais difícil depois da revelação de que, em 2002, ainda era socorrido por Marcos Valério, que pagou uma dívida de campanha de R$ 700 mil. Sem falar no caixa dois de 1998. Os tucanos estão amargamente arrependidos de não terem decidido seu afastamento quando o assunto veio à tona. Não quiseram, naquele momento, ser comparados ao PT, que afastara José Genoino da presidência. Ficou pior. Se José Serra reassume seu posto, para transmiti-lo ao senador Tasso Jereissati, que deve ser eleito no próximo mês, pode sobrar-lhe a ingrata tarefa de ficar explicando os fatos mineiros. Deixar Azeredo no cargo poderá ser desgastante para todo o PSDB.
Mas no PT e no governo, não se vê disposição para este embate. Se ela existisse, o partido já teria pedido a cassação de Azeredo — um passo irreversível — no Conselho de Ética do Senado. O que parecem desejar os petistas é manter o assunto em cartaz, em busca de um acordo com o PSDB para encerrar logo a crise. Com as cassações já em curso e o pouco que foi esclarecido. Sabemos, ainda que de forma incompleta, quem recebeu através de Marcos Valério, tanto em 1998 como no governo Lula. Mas continuamos ignorando, nos dois casos, de onde veio o dinheiro.
Problemas amazônicos
A vazante dos rios que castiga a Amazônia não se deve apenas ao atraso das chuvas. Os rios baixaram mais do que o normal porque a temperatura da água do Atlântico subiu e o degelo minguou na Cordilheira dos Andes, desabastecendo o Rio Solimões, que ao se juntar ao Negro forma o Amazonas. Doenças do planeta. Em menos de 20 dias, diz o governador Eduardo Braga (AM), a calamidade instalou-se, matando peixes e isolando populações. Mas os governos federal e estadual, juntamente com as Forças Armadas, estão enfrentando bem o desafio. A sociedade também. Por iniciativa da prefeitura, milhares de toneladas de alimentos foram recolhidas na capital do Amazonas, no último fim de semana, durante o Boi Manaus, festa popular que marca o aniversário da cidade.
Já o sul do Pará continua fervendo como um caldeirão. O Exército continua na região de Anapu, onde irmã Dorothy Stang foi assassinada, mas não foram ainda tomadas medidas concretas para evitar novas tragédias. E o Exército teme que elas aconteçam.
O PRESIDENTE da Câmara, Aldo Rebelo, já tinha no gabinete um quadro retratando Simon Bolívar. Agora ganhou de amigos uma escultura do artista plástico venezuelano Nelson Bermúdez. Colocou-a também no gabinete bolivariano.
A HORA É ruim para os tucanos. A CPI do Mensalão começa a ouvir os envolvidos com a denúncia de compra de votos para a reeleição. Hoje, os ex-deputados Osmir Lima e Chicão Brígido. Na quinta, Ronivon Santiago. Eles teriam recebido R$ 200 mil na época.
Luís Nassif - Democracia direta e referendo Folha de S. Paulo 25/10/2005
O referendo do desarmamento, se não desfaz, reduz as expectativas (pelo menos as minhas) em relação à chamada democracia direta. Nela, a população é chamada a votar sobre determinados temas, sem mediação dos partidos. No caso do referendo do armamento, o único componente partidário foi um sentimento anti-Lula difuso, em uma correlação irracional, já que o "sim", assim como o "não", era defendido por políticos de todos os partidos.
Sem a mediação dos partidos, a discussão foi um samba do crioulo doido. Como definiu bem Jânio de Freitas, ontem, o único vencedor do referendo foi o "grande medo". Votou-se "sim" em nome da insegurança; votou-se "não" em nome da insegurança.
O tema era complexo, o referendo foi inoportuno, a questão, mal formulada. Mas a barafunda da discussão deixou clara a enorme dificuldade de nós, da mídia, e da opinião pública média em tratar temas complexos sem mediação -ainda que falha, interessada, distorcida, como é a dos partidos políticos.
De um lado, viam-se defensores do "não", da direita à ultra-esquerda do PSTU, no mesmo camburão, invocando Gramsci para afirmar que a intenção do governo seria desarmar a população para implantar uma ditadura.
Invocaram a questão dos direitos individuais e da legítima defesa de forma distorcida -apesar dos artigos esclarecedores de Marcelo Coelho e Eliana Cardoso. Um explicou didaticamente que legítima defesa é um preceito inerente a situações objetivas de risco real de vida. Se me armo sem esse risco, não há legítima defesa. Se uso a arma para resolver um problema com o vizinho ou um uma briga de trânsito, na verdade a arma se constitui em ameaça ao vizinho, não um direito de defesa meu. Eliana mostrou, em seu artigo no "Valor", que nos EUA a jurisprudência é que as armas se constituem em direito coletivo, não em direito individual.
De pouco valeram estudos e estatísticas sobre as mortes por acidente com arma. Nem mesmo a morte entre torcidas organizadas, as notícias sobre o novo fenômeno das gangues juvenis de classe média. Na democracia direta, vale a mensagem mais simples. "O governo quer tirar meu direito de me defender" virou um clichê com mais força do que qualquer estudo técnico mais aprofundado.
Custo e benefício
Do advogado Roberto Militão:
1) Segundo o Ministério da Justiça, em 2004, foram vendidas apenas 1.229 armas legais no comercio regular. Se cada arma legal custa R$ 1.000, o total do interesse da "indústria da arma" é de apenas R$ 1,229 milhão.
2) Se considerado que, das 1.229, um bom percentual seja de pessoas autorizadas, que as comprariam de qualquer jeito, conforme o Estatuto, o número é ainda menor, digamos uns 30% do total.
3) Se o custo do referendo foi R$ 540 milhões, seria certo dividi-lo por mil armas, o que significa um custo de R$ 540 mil por arma legal vendida e, ainda que divididos por dez anos, R$ 54 mil por ano de "proibição".
A sociedade não teria muito maior benefício se esse dinheiro fosse utilizado diretamente em segurança pública?
Eliane Cantanhede - A bancada da arma Folha de S. Paulo 25/10/2005
Embalada pela estrondosa derrota do bem pelo mal, quer dizer, do "sim" contra o "não", a bancada da arma está cheia de planos.
Do líder da campanha do "não", deputado Alberto Fraga (PFL), ontem, na Folha: "Uma pessoa de 12, 13 anos, se sabe o que está fazendo, tem de ser julgada". No íntimo, acha que deve ser também condenada, mofar na prisão perpétua ou, quem sabe, enfrentar o paredão. Afinal, são os filhos dos pobres mesmo...
Vêm aí as batalhas pela redução da idade penal, pela prisão perpétua, pela pena de morte e, por que não?, até pela bomba atômica. Se é para preservar o direito de as pessoas comprarem armas à vontade, em nome da ilusão de "autodefesa", é obrigatório preservar o direito de os países terem suas próprias bombas atômicas contra ameaças externas.
O fato é que o referendo era do bem, mas proporcionou o recrudescimento da direita mais assustadora, que manipulou um sentimento geral de protesto. Para dizer não a Lula, ao governo, à esquerda, à polícia, não a tudo, a maioria do povo se recusou a dizer sim à vida e ao fim do comércio livre de armas. O que menos importou foram as armas.
O "sim", o verde e uma forte limitação às armas ficaram como coisa de bobocas politicamente corretos, irresponsáveis, levianos e trouxas; o "não" e o preto de Fraga, como os salvadores da pátria. E dos direitos.
A maioria achou que estava votando para derrotar Lula e para manter um direito. Mas a eleição é em 2006. E direitos de quem? De quem não tem arma nem nunca terá ou de quem fabrica e usa armas? Achando-se esperto, o ingênuo defendeu o "direito" do esperto.
O eleitor do "não" acusava os progressistas de cretinos. Aliou-se sem perceber aos conservadores que não querem o fim da corrupção e da violência policial coisa nenhuma. Querem apenas manter o livre comércio de armas e ampliar o direito de acabar com a vida do bandidinho (ou suspeito) pobre. Vem mais por aí.
Clóvis Rossi - Boa idéia, má execução Folha de S. Paulo 25/10/2005
Quando foi introduzida a cédula única nas eleições brasileiras, meu pai me levou com ele para o que parecia então uma festa cívica, mas está virando cínica.
Antes da cédula única, com o nome de todos os postulantes, cada candidato imprimia sua própria cédula.
É pré-histórico, eu sei, mas é como sou: pré-antigo, em vez de pós-moderno. É da vida.
Bom, naquele dia, enquanto meu pai ficava na fila, presenciei um bate-boca surrealista: um cabo eleitoral queixou-se ao seu candidato, casualmente em visita ao colégio eleitoral em que estávamos, que a canetinha amarrada com barbante na cabina não chegava até o último nome da cédula, justamente o do candidato em visita.
Horror, ameaça de queixa ao TRE. Quando meu pai finalmente saiu da votação, perguntei-lhe se a caneta chegava ou não ao último nome da cédula. E ele devolveu os fatos à simplicidade que tinham: se a caneta não chega até o último nome da cédula, basta mover a cédula um pouco mais para cima até que o nome ficasse ao alcance da caneta.
Absurdamente simples. Mas o suficiente para entender, antes mesmo de ter idade de votar, que, no Brasil, o mundo político consegue complicar o simples e as melhores idéias.
Consultas populares, referendos e plebiscitos são uma bela idéia. No mínimo, porque, como comentou ontem Fernando Rodrigues, "quando as pessoas votam, sempre há algum debate, e a tendência é o voto ficar mais depurado nas próximas eleições".
Mas tanto a pergunta torta como o tema para o primeiro plebiscito em muitos anos, mais a propaganda igualmente torta dos dois lados, quase quase conseguiram emporcalhar a bela idéia.
Ainda assim, aposto que o brasileiro esteja hoje mais informado sobre a violência do que até o mês passado. E olhe que votei "sim" e poderia, portanto, achar que o tal de povo não sabe votar. Que venham, pois, mais plebiscitos e/ou referendos.
Jânio de Freitas - Pequenas variações Folha de S. Paulo 25/10/2005
A expulsão de Delúbio Soares não é, como dizem tantos petistas, uma reparação à moralidade ferida do petismo: é um ato que desonra o PT. A covardia tem sido a regra de conduta pessoal e política mais comum entre companheiros de Delúbio que, na cúpula do PT, fogem de compartilhar com ele as responsabilidades que com ele dividiam nos tempos de maquinações vitoriosas.
Fazer de Delúbio Soares o culpado único é um ato de imoralidade pelo menos equivalente à imoralidade que, não sendo apenas sua, resulta em sua expulsão.
Revisão
A anunciada desistência do deputado Roberto Brant a continuar na política seria, a confirmar-se, uma conseqüência das precipitações que tanto fermentam o noticiário e as CPIs do dinheiro ilegal. Acusado de receber da Usiminas, por intermédio de Marcos Valério, a contribuição de campanha no minucioso valor de R$ 102.812,76, Roberto Brant foi lançado à vala comum do caixa dois, e lá permanece para efeitos públicos.
Roberto Brant levantou, no entanto, os documentos, inclusive nota fiscal, correspondentes ao pagamento de um programa do PFL de Minas, e não de sua campanha eleitoral, naquele valor. Todo pefelista paga pela pouca simpatia do PFL na mídia, mas o caso de Roberto Brant merece mais atenção e isenção. Primeiro, porque os elementos de sua defesa não podem ficar sem a apreciação pública dada à acusação. Segundo, porque Roberto Brant é parlamentar dedicado e sério, com tal característica há quase 20 anos na Câmara.
Jogo baixo
As ameaças um tanto chantagiosas que PSDB e PFL fazem aos petistas, caso investiguem mais as colaborações de Marcos Valério às finanças políticas do senador Eduardo Azeredo, comprometem os peessedebistas e os pefelistas muito além da simples permuta que exigem.
A ameaça do PSDB e do PFL é convocar Fábio da Silva, filho de Lula, para depor sobre a adesão da Telemar à empresa de que é sócio. Se os senadores Sérgio Guerra e José Agripino, entre outros, vêem motivos para convocar Fábio da Silva, seu dever funcional e pessoal é fazê-lo. E, antes disso, espera-se que expliquem por que não o fizeram antes. Em caso contrário, tornam-se suspeitos, no mínimo, de proponentes do "acordão" que tanto negaram.
Entre Marcos Valério e as finanças políticas do peessedebista Eduardo Azeredo há transações que devem ser esclarecidas. E o PSDB e Eduardo Azeredo não estão acima da obrigação, inclusive legal, de aceitar o papel das CPIs.
A resistência do PSDB e do PFL aumenta, a meu ver, as razões para investigar o que há de tão perigoso por trás desse forte biombo.
A novela
A semana promete. Hoje a Comissão de Constituição e Justiça deve decidir a sustação, ou não, do processo contra José Dirceu. A CPI do Mensalão começa a ouvir alguns dos acusados de vender votos, na Câmara, para o projeto de reeleição de Fernando Henrique. Na CPI dos Bingos, está previsto depoimento de João Carlos da Rocha Mattos, juiz hoje na cadeia, sobre o caso Celso Daniel. E amanhã tem mais.