Relator desmonta defesa de Dirceu e abre brecha na 'blindagem' de Lula Desmentindo suspeitas iniciais de que sua posição de governista (tão fiel que deixou o PPS quando o partido definiu-se por fazer oposição) poderia contaminar o relatório do processo de José Dirceu no Conselho de Ética, o deputado Júlio Delgado foi irretorquível na fundamentação de seu voto a favor da cassação do mandato por quebra de decoro parlamentar.
Cruzou dados, confrontou informações, relacionou incongruências , expôs evidências, relatou situações, exibiu atos falhos cometidos pelo próprio Dirceu e concluiu pela definição precisa da infração ao que realmente está em jogo: o conceito do decoro, o sentido das prerrogativas e obrigações inerentes ao receptor de delegação popular.
Delgado surpreendeu não pelo resultado do relatório, já antecipado, mas pela linha de argumentação e sustentação do elenco de "provas contundentes do desprezo do deputado José Dirceu pelas limitações éticas que devem pautar a atuação dos mandatários públicos".
Derrubou a tese da defesa em seus pilares centrais: a ausência de base real às acusações e a impossibilidade de a Câmara imputar a sentença de quebra de decoro ao político licenciado da atividade parlamentar.
Começou por estabelecer o princípio de que a delegação do mandato é indissociável do parlamentar ainda que esteja exercendo outras atividades.
Com o seguinte raciocínio: se é prerrogativa do deputado ou senador ocupar cargos no Executivo, é inerente também ao mandato a observância das obrigações quanto à correção de conduta esteja ele fora ou dentro do Parlamento.
O relator fez minguar o sentido da frase de efeito - "Não sou corrupto" - pronunciada com ênfase por Dirceu.
Na visão de Júlio Delgado, não está em julgamento a comprovação ou não do ato de corrupção, mas a conduta imprópria, por ação ou omissão, de um ocupante de função pública da magnitude da exercida por José Dirceu seja na coordenação política e administrativa do governo, seja na linha de orientação do PT.
"Quanto maior o cargo ocupado, maior a cobrança" e, por conseqüência, a responsabilidade, atestou o relator abrindo, ainda que involuntariamente, espaço para o uso de argumentação semelhante em relação ao papel do presidente Luiz Inácio da Silva na montagem e execução do sistema de relações entre o Executivo e o Legislativo.
Sistema este definido no relatório como "formas heterodoxas de relacionamento político do governo com o partidos", cuja coordenação, foi contundente em afirmar, coube a José Dirceu, teve como instrumento a concessão de vantagens financeiras para os aliados e resultou na indução de decisões de interesse do governo na Câmara.
Júlio Delgado mostrou a inconsistência da tese do desconhecimento a respeito das atividades da dupla Delúbio Soares-Marcos Valério, recorrendo para isso a alegações de Dirceu a respeito da própria biografia.
Alguém com 40 anos de vida pública, dono de poder e dedicação "notórios" ao cotidiano do governo e do partido, sustenta ele, não poderia ficar alheio aos acontecimentos a menos que tivesse funções vazias, fosse desprovido de influência, de apetite, de zelo pelo exercício do mando e de capacidade de julgamento. "O que não condiz com a biografia do deputado José Dirceu."
Na concepção de Delgado, a manutenção dos vínculos de lealdade e influência com o PT - que o relatório expõe rememorando trechos de vários depoimentos à CPI - não "torna crível" a hipótese de que Dirceu não "tivesse nada a ver com o que se passou". Afinal, "quem foi o capitão do time, o coordenador de tudo e de todos não podia estar alheio a tudo e a todos".
A surpresa com o conteúdo do relatório e o tom da exposição do relator - chegou a qualificar de "delirantes" os argumentos do advogado de defesa sentado ao lado de Dirceu" - prende-se sobretudo ao fato de Júlio Delgado ter sido um aguerrido defensor do governo quando líder do PPS na Câmara.
Transferiu-se para o PSB, que ainda outro dia reafirmou disposição de, junto com o PC do B, manter a aliança com o PT na campanha da reeleição do presidente Lula.
Em virtude das disputas de José Dirceu com o Planalto - a última delas a ofensiva para convencer os deputados petistas a não renunciar como queria o presidente -, pode até suscitar suspeitas de que a veemência tenha motivação e respaldo no gabinete presidencial.
Se for isso, configura-se uma estratégia perigosa, pois quando, em seu relatório, Júlio Delgado fala em "esquema atentatório à democracia brasileira", o faz com a autoridade de quem acompanhou de perto os atentados éticos aos quais se refere.
Seu testemunho tem a verossimilhança das denúncias de Roberto Jefferson. É fruto de depoimento de um aliado, cujas afirmações podem atingir José Dirceu na condição de executor das malfeitorias, mas atingem em cheio o governo em nome e a favor de quem o então chefe da Casa Civil fez o que Júlio Delgado tem certeza de que foi feito.
Se toma como inverossímil a versão do desconhecimento por parte de Dirceu, por analogia pode-se tomar também como fictícia a tese da alienação presidencial.