Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, outubro 18, 2005

Os politiqueiros JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI

fsp

"A chado não é roubado." Esta frase da infância me veio tão logo li a entrevista que Ricardo Berzoini deu à Folha na última sexta feira. "O PT não examina a legalidade dos fatos", e prossegue: todo mundo tem caixa dois e a corrupção simplesmente aparece quando o dinheiro, recolhido à margem, é desviado de seus fins partidários. "[O PT] examina a ética partidária. Esses parlamentares [os cassáveis], praticamente todos, foram levados a buscar recursos dessa forma pelo comando do ex-tesoureiro, que dizia haver o recurso no Banco Rural para pagar a dívida [de campanha]."


Se tivesse a coragem de cortar na própria carne, talvez não estivéssemos hoje mergulhados em tanta água turva


O novo presidente traz para si a culpa de um erro de execução porque tem caráter, mas o partido como um todo só considera um culpado, aquele que se desviou da ética partidária, ensinando a deputados angélicos o mapa da mina. O diabólico infrator será punido, provavelmente com uma polpuda aposentadoria (do caixa dois?), já que um partido democrático não precisa explicar de onde vem a água da fonte.
Para Berzoini, assim como para tantos outros, a ética abrange exclusivamente o partido na sua singularidade, sem que suas leis digam respeito ao sistema político como um todo. Deixemos de lado a discussão sobre como a moral se relaciona com a política. O que não tem cabimento é imaginar que o PT possui uma lei moral "sui generis" que lhe dispensa de explicar como se mantém, como arrumou tanto dinheiro. Se cada partido possuísse sua ética, ainda haveria política? Não seria a política de uma sociedade de celerados?
Não é só a norma moral que perde sua universalidade, é o próprio fato, na sua positividade absoluta sem sentido, que deixa de trazer qualquer vetor normativo. O que vem a ser o ato político se não se apresentar valendo para todos?
Ora, não cabe dizer que sempre foi assim, que o sistema é corrupto desde a colônia, pois nessa indiferença a corrupção deixa de ter sentido político, caracterizando-se então como mera infração de uma norma qualquer.
Importa, do ponto de vista científico e prático, diferenciar formas de corrupção -aquela do príncipe medieval não é a mesma do monarca do século 18, aquela de um país desenvolvido não pode ser confundida com aquela de um país africano, e assim por diante. Isso se evidencia quando se considera que a norma moral e a jurídica não se resumem a sentenças, mas ainda estão ligadas a procedimentos, a instituições que regulam a infração de tal modo que a norma possa ser reposta.
O que está em jogo não é apenas o financiamento irregular das campanhas nas modernas democracias representativas. Convém ainda examinar a legitimidade de um partido aceitar uma ética própria além do legal sem dar satisfações de como se mantém financeiramente. Uma coisa é o deputado cavar dinheiro não contabilizado para que ele próprio financie sua campanha. Em geral, se aproveita da corrupção ativa das empresas e dos grupos econômicos que estão sempre prontos para criar lealdades nos pontos nevrálgicos de decisão do Estado. Outra coisa é ele se comportar como membro de um exército da salvação que recebe ou, ainda, constrange a dar, na medida em que se considera o representante legítimo da emancipação. Cria-se, assim, um fluxo de recursos para o partido, posto como o último fim -por conseguinte, fim em si mesmo- e, nessas condições, matriz de qualquer legislação moral.
Muita gente está saudando a sobrevivência do PT como um partido igual aos outros, que virou social-democrata sem saber, que não conseguiu ainda elaborar um projeto nacional.
Vamos esperar as próximas eleições. Mas, do meu ponto de vista, é triste constatar que um PT como os outros reduz, e muito, o alcance reformista do sistema político brasileiro. Este ficou despojado de seu idealismo, daquele aguilhão que empurra a política cotidiana a extravasar seus limites.
Se por pragmatismo tenho escolhido outra política é porque, nas perversas condições atuais, me parece ser ela a única adequada a uma reforma do Estado de que tanto necessitamos. Mas pragmatismo não significa se submeter ao passo do cotidiano. Sempre esperei que um centro-esquerda se formasse e, juntos, fizéssemos profundas reformas no Estado e no país.
Bem sei que uma boa parte dos petistas foi contra essa intervenção do governo Lula no partido, que ele está dividido; mas não vou me enganar imaginando que os "refundadores" possam ter uma ação em médio prazo.
Em um partido de esquerda existe uma conivência religiosa entre seus membros difícil de ser rompida, mas deve sempre ser controlada. A campanha da reeleição está aberta e, com ela, o fazer de conta do marketing. A bandeira foi enrolada, inclusive porque a oposição pulou de contente ao ver o PT cair na vala comum. Ela mesma deixou de cumprir sua tarefa de avançar no possível, ir além dos limites da trama politiqueira. Sabemos que, em um país capitalista, o fio da meada não pode ser puxado até o fim, pois então desapareceria o tapete. Mas lhe faltou ousadia, a sensibilidade de perceber que a sociedade brasileira diminuiu o grau de tolerância em relação à ação política. Se tivesse a coragem de cortar na própria carne, se penalizasse os aliados que aderiram ao novo sistema de corrupção, talvez não estivéssemos hoje mergulhados em tanta água turva.

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