Ésurpreendente a pequena repercussão nos mercados e na própria sociedade dos desagradáveis acontecimentos que ocupam o noticiário político nos últimos quatro meses. Parece que estamos vivendo na Itália do parlamentarismo e dos escândalos políticos, quando subia gabinete e caía gabinete e a economia, impávida, continuava crescendo. Mesmo antes daquele período já se atribuía a Mussolini a famosa expressão: "Não é difícil governar a Itália, é inútil".
Não nos enganemos, entretanto. Não era inútil governar a Itália, assim como, no nosso caso, a inação do governo e do Congresso terá repercussões. É verdade que a excepcional conjuntura econômica internacional impulsiona as exportações e o crescimento da economia. As modificações ocorridas desde o Plano Real até o atual governo favorecem os bons resultados. Aprendemos a lidar com a inflação, definimos procedimentos de não ingerência governamental nas decisões da política monetária (o Comitê de Política Monetária-Copom) e cambial (o regime de metas inflacionárias com câmbio flutuante). Também a Lei de Responsabilidade Fiscal e os superávits primários aí estão para assegurar a estabilidade. Pode-se discordar, em um momento ou outro, da justeza das medidas tomadas para manter a economia do país navegando, mas não de seu arcabouço. Tudo isso gerou confiança.
As instituições se fortaleceram. O respeito aos contratos e às regras democráticas estão se consolidando. No plano das movimentações sociais fomos nos habituando às greves, que de numerosíssimas e politicamente orientadas, antes do Plano Real, se transformaram em ocasionais na busca legítima da reivindicação econômica. Mesmo movimentos mais ardorosos em suas demandas, como o MST, já não geram o medo, nem o entusiasmo, que antes produziam. As organizações da sociedade civil crescentemente pressionam o Estado e este se abre a processos deliberativos com maior participação dos interessados.
A crise ficou circunscrita ao governo e aos partidos que lhe dão sustentação, embora haja produzido um efeito deletério no Congresso e o impacto de um ciclone tropical tenha atingido o castelo governamental, provocando inundações nas salas vizinhas à do rei.
Não nos livramos, contudo, das conseqüências negativas da crise. Além do efeito desmoralizador que ela teve sobre o governo e os políticos, administrativamente perdemos o ano em curso e dificilmente haverá recuperação no próximo, que é ano eleitoral. O governo, agora paralisado, já havia retroagido em áreas vitais, como na implantação de uma política educacional conseqüente, ou no fortalecimento das agências regulatórias, contrapeso fundamental à avidez dos mercados. Desfez muito do que conquistáramos na melhoria profissional da gestão pública, com a enxurrada de "companheiros" e "aliados" que a inundaram. A paralisação das reformas e a ineficiência da administração cobrarão seu preço.
Quem se preocupa com alternativas para a situação atual precisa saber, antes da largada para a corrida sucessória, o que dirá na próxima campanha eleitoral. Não se sabe ainda se o atual presidente terá vontade ou condições para se candidatar e nem se vê o fundo do poço de seu partido. Ele se digladia em eleições internas para decidir se extirpará ou não o câncer que o acometeu. Neste quadro o PSDB não precisa se apressar nem se angustiar. Dispõe de tantos e tão bons pré-candidatos que pode ocupar seus esforços até março/abril do ano que vem para definir sua proposta e então "fulanizar", dizer quem será o escolhido.
Eleição não se ganha na véspera, nem se sabe hoje que partido estará mais bem situado para vencê-la no ano que vem. Tudo dependerá do clima da opinião pública, dos temas que serão apresentados ao eleitorado, da confiabilidade do candidato, de seu desempenho durante a campanha eleitoral e de quem serão os adversários. Mas é inegável que, seja qual for a conjuntura eleitoral, o Brasil tem problemas que precisam ser equacionados.
Precisamos continuar a fortalecer as instituições, a começar pelas lindeiras com o mercado. É da natureza dos mercados capitalistas resolverem seus problemas, às vezes por intermédio de crises e de destruição. O mercado foi a instituição que a história decantou para, fazendo do interesse pessoal o motor da vida econômica, permitir a convivência competitiva entre as pessoas e as unidades produtivas. O mercado, no entanto, não resolve os problemas coletivos, da sociedade e das pessoas, nem a desigualdade. É preciso fortalecer outras instituições, do estado e da sociedade civil, que possam se contrapor ou complementar a lógica implacável dos mercados.
A meu ver, "neoliberal" é quem não leva avante com criatividade e energia as políticas públicas universais (saúde, educação, previdência social, tributação etc.) que dêem oportunidades mais igualitárias. É neoliberal quem não constrói instituições, deixando o mercado a operar sozinho. É neoliberal quem não percebe que na sociedade contemporânea não é a burocracia estatal em sua arrogância quem constrói um mundo melhor. Este depende mais de parcerias entre governo e sociedade civil e da criação de instituições que abram espaços nas democracias representativas para formas mais deliberativas e mais participativas de democracia. Neoliberal, enfim, é quem não sabe separar o interesse público do privado. Retrato mais parecido com o governo do PT do que com o do PSDB.
A partir da reafirmação dessa posição, social-democrática, o PSDB pode construir laços de confiança com a sociedade. Nunca mentiu no passado sobre como vê o mundo e o que faria no governo. Dirá com franqueza o que fará se voltar ao poder. Sem renegar o que ajudou a construir com o Plano Real, fortalecendo a economia de mercado, dirá como escapar da atual armadilha econômica: a relação entre taxa de câmbio, dívida interna elevada, taxas de juros altas e controle da inflação, que nos condena a taxas de crescimento medíocres e desemprego estabilizado a nível elevado. Se fosse fácil escapar dela tanto meu governo como o atual já teriam escapado. Será preciso juntar outra vez competência técnica e habilidade política para desarmá-la, como foi feito com o Plano Real.
Dificilmente escaparemos dessa armadilha sem que se exponha à sociedade a crise fiscal que se avizinha, impulsionada pela escalada dos gastos da Previdência e pelo ingurgitamento do funcionalismo produzidos pelo governo atual. Por outro lado, sem crescimento econômico mais robusto, sem redução dos juros da dívida interna, como pensar a sério em reforma tributária que não resulte em mais impostos e menor efeito distributivo e como investir mais em infra-estrutura? Como aperfeiçoar a rede pública da saúde e da educação? Como fortalecer a agricultura familiar? Como extirpar os bolsões de miséria? E esses são os compromissos social-democráticos contemporâneos.
Por fim, os partidos deverão dizer o que propõem para a reforma do sistema eleitoral e partidário, para a segurança pública e para o acesso rápido às decisões judiciais. É a questões como essas que devemos dedicar nossos esforços nos próximos meses para nos habilitarmos a oferecer uma alternativa de governo que ajude o Brasil a recuperar a crença em seu futuro e no funcionamento da democracia.