Entrevista:O Estado inteligente

domingo, outubro 23, 2005

Liebling; o glutão gracioso

OESP


Renasce em livro o prazer de devorar o texto ao ponto deste refinado jornalista americano

Mario Sergio Conti

O jornalista americano A.J. Liebling adota uma perspectiva rombuda para descrever a experiência de Marcel Proust com as madalenas, os bolinhos que o romancista francês comeu com chá numa noite chuvosa e fizeram com que ele, mais que lembrasse, revivesse sua infância e recuperasse o tempo perdido. Em Fome de Paris, Liebling recorre a um verbete de dicionário para definir a madalena: "bolinho leve, confeccionado com açúcar, farinha de trigo, suco de limão, aguardente e ovos". E a seguir lamenta o pouco apetite de Proust:

"Com uma dúzia de ostras de Gardiners Island, uma tigela de caldeirada de mariscos, um punhado de mexilhões, algumas vieiras, umas três porções de refogado de siri-mole, umas espigas de milho cozidas, uma delgada posta de peixe-espada, cortada de uma área generosa, um par de lagostas e um pato de Long Island, ele talvez tivesse escrito uma obra-prima".

Liebling, como se vê, era espirituoso. Enquanto Proust, partindo de um bolinho escreveu uma obra-prima, Em Busca do Tempo Perdido, Liebling partiu de uma obra-prima para produzir uma piada. Nada contra. Fome de Paris (Ediouro, 189 páginas) é um livro bem engraçado que, em alguns momentos, transcende a sua condição de peça humorística para servir de retrato de época e de costumes.

Abbott Joseph Liebling é uma das glórias do jornalismo americano. Em 1935, ele começou a trabalhar na revista The New Yorker, na qual ficou até morrer, quase 30 anos depois. Foi correspondente na Europa e no norte da África na 2ª Guerra Mundial, mas o seu forte eram as reportagens sobre Nova York, lutadores de boxe, tipos menores e excêntricos, gente da rua e do submundo. Liebling ajudou a definir o estilo da época de ouro da New Yorker. Sua atenção se voltava toda para a vida concreta, para as pessoas, e passava ao largo dos grande temas, das abstrações e teorias. Com prosa fácil e direta, ele construía suas reportagens como narrativas. Nelas, são os personagens que conduzem a ação, que é entremeada por comentários bem-humorados. O repórter tinha consciência das suas virtudes e limites: "Posso escrever melhor do que qualquer um que possa escrever mais rápido, e mais rápido do que qualquer um que possa escrever melhor".

Fome de Paris, publicado em 1962, um ano antes de sua morte, foi seu último livro. Ele junta reportagens, retrabalhadas, com a lembrança do ano que passou em Paris, entre 1926 e 1927, estudando história medieval na universidade Sorbonne. "Estudando" é modo de dizer. Temendo que Liebling se casasse, ou se estabelecesse profissionalmente muito cedo, seu pai, um rico comerciante de peles, quis que ele passasse um tempo na Europa. Em Paris, o jovem de 22 anos não ia às aulas. Passeava, lutava boxe, tentou aprender a remar e esperava avidamente pelo cheque paterno. Eram também atividades marginais. O que ele fez, mesmo, foi comer (nos dois sentidos) e beber.

Suas descrições etílico-culinário-femininas são impagáveis: "o lado de dentro da massa tinha a consistência da palma da mão de um bebê"; "em matéria de mulher, ela era um verdadeiro sundae de caramelo, bonita como uma tulipa de chopp de generoso colarinho branco"; "a silhueta consagrada era a do espartilho. Daí, eu imagino, surgia um problema dietético: a mulher precisava comer o suficiente para ficar rechonchuda acima e abaixo da cintura, porém esbelta no meio"; "se precisasse comparar minha vida a um bolo, as estadas em Paris teriam representado o recheio de chocolate. As camadas intermediárias não passavam de puro pão-de-ló"; "ao pensar nos milhões de permutações de comidas e vinhos para se testar, pode-se ver que a vida é curta demais para a formulação de dogmas".

Os livros de A.J. Liebling estiveram fora de circulação nos Estados Unidos durante décadas. Começaram a ser republicados recentemente e obtiveram logo sucesso, sobretudo Fome de Paris. Há três hipóteses para esse súbito renascimento. A primeira, óbvia, foi o centenário do nascimento de Liebling, comemorado no ano passado.

A segunda, não tão óbvia, foram as mudanças no jornalismo americano. Mudanças para pior, bem entendido. À fragmentação, aos textos curtos, à desatenção, à rapidez, ao imediatismo, aos juízos sumários e brutais e à vulgaridade que tomaram conta do jornalismo de qualidade, Liebling oferece calma, luxo e voluptuosidade. A calma da narrativa límpida e bem concatenada. O luxo de esmiuçar temas marginais, mostrando como se move esse fato tão fugidio, a experiência concreta. E por fim a voluptuosidade do mundo dos sentidos. O que se encontra nos livros de Liebling é a experiência direta de um homem curioso com os assuntos que lhe interessam.

A terceira hipótese diz respeito à natureza do tema tratado em Fome de Paris, a culinária. Aquilo que a aristocracia sempre soube, e a burguesia não tanto, virou pedra-de-toque dos emergentes de todos os quadrantes: a culinária é um signo de distinção social. Entender de comida, de vinhos, de restaurantes (o que implica ter acesso, via riqueza, à qualidade e à variedade das mercadorias e serviços culinários) virou símbolo de fineza. Não basta mais cultivar a ética protestante do capitalismo e acumular riqueza. É preciso gastá-la nobremente. Em comida e bebida e, para não ficar feio, em obras de arte e caridade. Igualzinho ao que fazia a nobreza pré-1789. W.H. Auden disse isso de maneira bem mais concisa: "Quando a necessidade é associada ao horror, e a liberdade ao tédio, eis uma boa hora para abrir um bar". Ou um restaurante.

Com a culinária, Liebling voltou à moda. Mas de um jeito particular. O seu refinamento é produto antes da glutonice do que da riqueza. "Um bom apetite é o primeiro requisito para escrever bem sobre comida", ensina o jornalista. Nos anos 20, com uns poucos dólares Liebling podia se empanturrar à vontade. Só ia a restaurantes baratos, dava preferência aos pratos pesados, aos molhos fortes e à bebida de teor alcoólico elevado (a sua preferida era o Calvados). E se cercava de pessoas como ele: glutões de carteirinha.

Há tanta comida e bebida em Fome de Paris que quem estiver de dieta deve mantê-lo a distância. A boa digestão é garantida porque os ácidos do humor e do amor dissolvem tudo. Humor porque o jornalista sabe que é um escritor modesto, sabe que está escrevendo sobre um tema bobo e desimportante. E amor porque o livro é também uma rememoração, cheia de nostalgia e carinho, da sua juventude parisiense. É esse toque proustiano que confere delicadeza à orgia gastronômica.




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