Entrevista:O Estado inteligente

sábado, outubro 22, 2005

Variações sobre o humanismo

OESP

Miguel Reale

A todo instante se ouve dizer que o homem, no seu modo de ser e nas suas relações, deve realizar o humanismo, sendo conveniente tecer algumas considerações sobre esse assunto.

É preciso distinguir, em primeiro lugar, o humanismo como categoria histórica e como expressão de nosso viver comum. Num primeiro sentido nós nos referimos àquela época, no fim da Idade Média, em que o homem tomou consciência de si mesmo, sobretudo pela meditação da obra dos pensadores clássicos da Grécia, como Platão e Aristóteles. Essa fase marca o início do Renascimento, caracterizado pela tentativa contínua de explicar os fatos humanos em si mesmos, nos próprios elementos que os compõem.

De um certo ponto de vista, o humanismo, como categoria histórica, assinala uma laicização do pensamento, ou seja, a crescente convicção de que é possível explicar os fatos humanos sem serem meros reflexos de Deus ou dos deuses, conforme se pensava em uma divindade una ou plural, esta sob a influência direta da tradição helênica.

Essa "humanização do homem" ocorreu nos séculos 15 e 16, abrindo campo para a chamada Idade Moderna, na qual ainda nos encontramos, apesar de haver vários pensadores que já falam em "pós-moderno", mas, a meu ver, sem ter sido satisfatoriamente caracterizada essa passagem.

Do exposto já resulta que o humanismo representa um programa de conhecimento da capacidade criadora do homem em todos os sentidos, valendo-se, sobretudo, dos recursos da natureza. O que prevalece no humanismo é sempre um desejo de inovar, de criar coisas novas, vendo no presente sempre uma oportunidade de instaurar novos valores.

Nesse esforço inovador, o homem assume duas posições complementares, de um lado, desejando conhecer e, do outro, aplicar o conhecimento visando a alcançar o resultado. Abre-se, assim, o campo da ciência em duas grandes direções, uma descritiva e a outra normativa, isto é, procurando estabelecer regras de comportamento ou de caráter técnico.

Daí a divisão das ciências em naturais, tendo por base o conhecimento cada vez maior das leis da natureza, e humanísticas, vendo em todas as oportunidades um modo de servir à pessoa humana, tida como o valor primordial, do qual todos os outros decorrem.

Por outro lado, surge a idéia da harmonia necessária no próprio comportamento humano, tendo como base a solidariedade de todos visando a alcançar uma solução social e política que atenda às aspirações de cada um e de todos, concomitantemente. Este ponto é da maior importância, porquanto é nele que vamos encontrar as raízes da Política e do Direito e, mais amplamente, da Ética. Pode-se dizer que esta é a condição primordial do humanismo, e a sua própria essência.

Como se vê, o humanismo é inseparável da historicidade, isto é, de um sentido de conquista temporal do que surge, quer espontaneamente no processo natural, quer em virtude da pesquisa ou da investigação humanas.

No meu entender, não compreendo o humanismo sem historicismo, o que acaba por exigir a formação de um ideal ético para a humanidade, tendo como objetivo final a paz universal, como o vislumbrou Emmanuel Kant.

Estou convencido que sem essa visão espiritual não se pode compreender nem a Política nem o Direito, aquela como a ciência e uma arte de traçar um sistema de liberdade e de igualdade para a comunidade e o segundo como um ordenamento tanto do Estado como dos valores individuais segundo um sistema de normas entre si harmônicas, do qual resulta o sentido superior do dever, ou das obrigações.

Não há, em verdade, solução humanística sem levar em conta a díade do poder e do dever. Poder do Estado como responsabilidade pelo que é justo e atuação no sentido da realização deste; dever como compreensão da própria conduta que não pode constituir jamais uma categoria absoluta, que facilmente leva ao abuso.

O humanismo, como resulta do exposto, não se reduz a mero estudo das aspirações humanas em suas superficialidades, porque envolve sempre uma investigação profunda e global.

Sob esse prisma é que se compreende por qual razão se entendem, geralmente, como humanísticas as ciências e as artes que se dedicam ao destino humano, realizando suas projeções básicas.

Nessa tarefa fundamental, o homem e a mulher devem se empenhar com todas as forças de que dispõem, cada um de conformidade com o próprio sexo, pois no humanismo não se compreende uma competição entre o homem e a mulher, numa disputa inglória e desesperançada.

Infelizmente temos assistido à renúncia da mulher a uma série de funções fundamentais, essenciais para ela e para a sociedade, a pretexto de superar o homem ou igualar-se a ele; o resultado dessa competição é que a mulher se tem perdido numa série de atividades negativas para ambos os sexos, como, por exemplo, o uso do álcool e das drogas.

Uma das aspirações maiores do humanismo é a igualdade do casal, seja no casamento, seja na união estável, de tal modo que seja um modelo para a coletividade e até mesmo para as relações dos povos.

Finalmente, não se deve esquecer que a consciência humanística implica um senso de igualdade, quer na sociedade nacional, quer na dos demais povos, visando a pôr termo ao colossal desemprego, que assinala a maior crise do capitalismo.

Onde reina o humanismo, a economia se liga essencialmente à ética, não tendo apenas a perspectiva do lucro e da riqueza material.

O humanismo é, em suma, uma forma de espiritualismo, cujo valor maior é o da pessoa humana.

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