Julgando ter ultrapassado o pior momento da crise do "valerioduto", governistas retomam em uníssono a peça de defesa, forjada já no início do escândalo, de que tudo não passaria de um esquema paralelo para financiar campanhas eleitorais. O raciocínio propõe que recolher dinheiro irregularmente para saldar compromissos de campanha seria um crime menor, passível de penas atenuadas, quiçá até de absolvição, pelo fato de que todos os partidos recorreriam ao mesmo expediente.
Mas não pára por aí. Ao enunciar uma prática que seria generalizada, a argumentação tenta afastar a necessária responsabilização individual e transferir o problema para uma solução sistêmica. Então, passa a pregar a necessidade de reformar as regras político-eleitorais, que seriam as culpadas em ultima instância por tudo o que está acontecendo. Esse exercício retórico, porém, não resiste à lógica.
Um fundo ilegal em dinheiro vivo, das proporções do que está em questão, não surge da intenção de amigos de doar "santinhos" que não são informados à Justiça Eleitoral, para usar o exemplo citado pelo vice-presidente José Alencar, em sabatina promovida pela Folha, ao argüir a banalidade do caixa dois. Tampouco se explica apenas por doações de empresas que não desejam aparecer na prestação de contas oficial temendo represália -empresas essas que, ao esconderem a doação, ou maqueiam seus balanços ou sonegam tributos.
É, necessariamente, um escoadouro para onde vão doações dos caixas clandestinos de empresas interessadas em contratos com o poder público -bem como em regulamentação de atividades que lhes interessam- e toda sorte de "comissões" que contratos como esses propiciam. É dinheiro de sonegação e de corrupção, portanto. O fato de esses recursos serem aplicados em campanha eleitoral, em consumo pessoal ou no enriquecimento do político não os torna menos ilegais e não redime seu usuário de ter cometido crime.
Além disso, um político que aplicou recursos de fonte ilícita em sua campanha eleitoral obteve, sim, uma vantagem pessoal. Ele deixou de ter de aplicar dinheiro de seu próprio bolso para essas despesas e obteve vantagem indevida na disputa eleitoral. É disso que se trata quando se apontam as distorções que o poder econômico imprime às eleições.
Por sua vez, não procede a idéia de que, se a prática de uma ilegalidade é generalizada, melhor que punir quem delinqüiu seria mudar as regras. A hipótese da prática genérica carece por definição de prova, que teria de ser também genérica. Mas, admitindo-se a generalidade, por que deixar de punir com rigor quem for apanhado? Equivaleria a não multar o motorista flagrado dirigindo acima da velocidade sob a alegação de que, fora do alcance dos radares, desrespeitar limites é atitude geral.
O nível do debate piora mais quando se começam a desfraldar os modelos de sistema eleitoral que teriam o condão de combater o financiamento ilegal de campanhas. Fala-se, por exemplo, em proibir doações privadas e instaurar um sistema exclusivo de financiamento público.
Não se enxerga de onde viria a menor vulnerabilidade desse sistema comparado ao que existe hoje. Por que uma empresa que doa ilegalmente dentro das regras atuais deixaria de doar ilegalmente com o financiamento público? Não deixaria. Que dispositivo na nova regra inibiria licitações dirigidas, superfaturamento e aditamento criminoso de contratos públicos e acerto de "comissões" em geral, que configuram os nascedouros do dinheiro sujo? Nenhum.
Em suma, aplicar a lei com rigor continua sendo a melhor "reforma" para lidar com megafenômenos criminosos do porte de um "valerioduto". Aumentar a probabilidade da punição é o grande fator capaz de inibir a continuidade da construção desse tipo de esquema.
Isso significa individualizar, e não generalizar, as responsabilidades -nos planos político e jurídico-, não poupar nenhum dos beneficiários sob a alegação diversionista de que usou o dinheiro em campanha eleitoral, identificar as origens do dinheiro e punir os corruptores.
Entrevista:O Estado inteligente
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