Entrevista:O Estado inteligente

domingo, outubro 30, 2005

João Ubaldo Ribeiro Salvando a pátria

 

Sobrolho franzido, ar tão grave quanto lhe permitem os bermudões e as sandálias velhas, o escritor abandona de supetão o teclado e resolve descer à rua. Está difícil escrever hoje, nesta primavera londrina que o Rio de Janeiro tem vivido, com o céu sempre carregado e o sol foragido. Paradoxalmente, o que aflige o escritor não é o que, pelo menos de acordo com o folclore do ramo, volta e meia se abate sobre os que escrevem com obrigação e prazo, ou seja, a famosa falta de assunto. É justamente o contrário, é o excesso de assuntos. E, na distante juventude, tempo em que se estudava latim, ele aprendeu que quod abundat non nocet – o que abunda não faz mal. (Carece de suporte lingüístico a tradução, corrente nessa época, por "quando a bunda não é nossa.") Portanto, não teria razão de queixa.

Mas sabemos todos que isso não é exato. Só vale num contexto positivo, pois fazem mal, por exemplo, o excesso de vileza a que temos sido expostos e continuamos sendo, a violência, a impunidade e tudo mais que sempre sai nas entrevistas a respeito da famosa realidade nacional. Temos seca na Amazônia e no pantanal do Maranhão, febre aftosa (aliás, uma doença que deveria ser enquadrada por subversão, já que contradiz insolentemente afirmações do presidente da República) pipocando aqui e ali e outros acontecimentos lamentáveis a ameaçar o melhor governo que este país já teve – ainda mais ou menos nas palavras dele.

Perturba também nos informarem que os juízes são ladrões. Não juízes de Direito condenados e presos, pois isso já é mais ou menos manjado há uns quatro séculos, mas o juiz de futebol. Claro que devia haver alguns casos em que o bicho era ladrão mesmo, mas, de modo geral, chamar o juiz de ladrão constituía parte essencial da torcida, do comentário ou da entrevista do técnico perdedor. Era um ritual, fazia parte de um todo complexamente delicado, não uma acusação séria, como em outras circunstâncias. Agora não, agora nos tiraram até isso – que graça tem proferir verdades em clima de torcida? Na torcida, devem ser entoados os mantras habituais, entre os quais havia lugar de honra para chamar o juiz de ladrão.

O futebol, aliás, se tornou um esporte radical. Nem drible pode mais. Quer dizer, pode, embora todo mundo que sabe driblar esteja jogando fora do Brasil. Mas sem nenhum exagero, refinamento ou exibição, porque isso agora é desrespeito ao adversário. Garrincha, que gostava de brincar, provavelmente tomaria um murro do primeiro lateral que transformasse num de seus inúmeros "joões". E haveria comentaristas que dariam razão ao esmurrador, pois, afinal, Garrincha era politicamente incorreto. Claro, esmurrar alguém também é politicamente incorreto, mas tenho certeza de que o agressor seria enquadrado no dispositivo do Código Penal que exclui ou minora a pena do delito que for cometido sob violenta emoção, após injusta provocação da vítima.

Sair com a camisa do time agora só sob escolta. Do contrário, o sujeito pode ser linchado, esfaqueado, espancado, enforcado, fuzilado ou qualquer outra coisa que a reputada cordialidade brasileira permita. Daqui a pouco, um jurista inovador inventa que sair com a camisa do time, principalmente quando ele foi vitorioso contra um grande rival, é injustíssima provocação e o agressor entra em incontrolável violenta emoção. E nem preciso mais perguntar a alguma autoridade policial que atitude tomar. Ele me fornecerá o número do Disque-Linchamento e me aconselhará, como hoje aconselha que se saia com cópias dos documentos e sem cartões de banco, a usar cores neutras nos dias de jogo, para não despertar violenta emoção em quem veja na cor de minha camisa normal uma referência óbvia às cores do time que ganhou do dele.

E, como já tive ocasião de comentar, estamos perdendo muito tempo com essas comissões todas e as pragas mortais que o governo apregoa a nossos ouvidos desatentos: o Denuncismo e o Moralismo. Quem quer que denuncie um trambique deverá incorrer em denuncismo, novo delito que, segundo perversas línguas me contam, vem aí numa Medida Provisória. E quem quer que se escandalize ou proteste contra alguma maracutaia será rotulado de moralista nojento e acolhido aos gritos de "bicha, bicha, bicha!" aonde quer que vá. Como eu também já disse, o Natal vem aí, o carnaval está praticamente nas bicas e ninguém parece estar se mexendo, preferindo ficar infernizando a vida de políticos que, afinal, na esmagadora maioria dos casos e outra vez no dizer do presidente, só fizeram o que todo mundo faz e não são corruptos, apenas cometeram erros como qualquer um comete.

Agora mesmo, não estou vendo nada para o Halloween, que me parece, pelo menos ao escrever estas linhas, muito desanimado este ano. Como é que se deixa morrer uma tradição nacional de pelo menos cinco anos, assim dessa forma? Halloween amanhã, pessoal, vamos ver todas as mulheres usando chapéus cônicos e narigangas de um palmo e cavalgando vassouras, como se apresentam costumeiramente as feiticeiras brasileiras. E, quanto aos outros problemas, aprendamos com o nosso próprio exemplo. Aqui no Rio, desenvolvemos uma forma estupenda de ação política, que consiste em abraçar edifícios, praças públicas, árvores, monumentos e semelhantes. Ou jogar cruzes de isopor na lagoa Rodrigo de Freitas, etc. Pois, desculpem a imodéstia, eu bolei uma ação mais espetacular ainda, para salvarmos a Pátria. Numa manifestação maciça, vamos nos vestir de verde e amarelo e, no dia e hora marcados – o Beija Brazil –, ficar de quatro e beijar o solo pátrio, dizendo "eu te amo". Me arrepio só em pensar na energia positiva – gente, será que ninguém segura a criatividade brasileira?

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