Não dei sorte, porque ainda peguei a fase em que não dar cachação em menino era considerado "pedagogia moderna" e coisa de frescos (que tinham que ser muito machos para encarar a barra que era ser fresco naquela época). Então, como o velho sempre pendeu, apesar de uns passageiros surtos de esquerdismo, para um certo conservadorismo, caí muito no cachação. Tenho vasta experiência, pessoal ou indireta, com a pedagogia antiga. Encarei muita surra de cinturão e palmatória, mas nunca me ajoelharam em milho, é uma falha em minha formação. Sempre havia alguém que tinha ajoelhado em milho, alguns enquanto rezavam um rosário, outros entoavam frases sonoras sobre suas culpas, muitas das quais tão floridas e elaboradas que o castigado nem as entendia, como por exemplo "estulto estou por falta de estudo e estulto não estarei se isto tudo estudar". Lido assim, pode até parecer moleza, mas imagine isso encostado num canto de parede, uma mão levantada acima de sua cabeça e você tendo de dizer tudo com clareza dezenas de vezes encarreiradas. Essa não era, graças a Deus, do repertório lá de casa, era de um colega meu. Havia narrativas mitológicas sobre o que faziam às crianças que agiam mal. Fiquei, creio eu, mais ou menos na média para minha turma da época, se bem que meu pai era hors concours, justiça seja feita. Hoje em dia, não, hoje em dia a coisa é muito diferente. Esses moços, pobres moços, não sabem de nada. Os freqüentadores de boteco e leitores de orelhas de livros e suplementos culturais descobriram a psicanálise e então há uma corrente, pouco valorizada ou mesmo notada, tal a sua disseminação, cujos pilares demonstram que ninguém é culpado de nada. Ninguém é mais responsável por nada. Pensar o contrário é uma estupidez retrógrada e desumana, além de necessariamente render uma avassaladora sensação de culpa. Antigamente o sujeito era preguiçoso, vagabundo, mentiroso, vigarista, fofoqueiro, aproveitador e assim por diante. Hoje não, hoje todo mundo sofre de desmotivação sistêmica endo-exógena (preguiçoso) ou é mitômana narcísica compulsiva com um superego tirânico deste tamanho e filha de uma mãe opressora (mentirosa, aproveitadora e fofoqueira) e assim por diante. Cada vez mais as vítimas são responsáveis, diretas e indiretas, pelo que as atingiu e a moralidade agora é denunciada desdenhosamente como "moralismo". Quem foi criado em outro tempo, com outros valores, precisa atualizar-se ou conformar-se, como eu, em ser paciente terminal de incorreção política, que pode não matar direto, mas enche o saco bastante. Que as vítimas são responsáveis pelo que de mau lhes acontece acaba de ser reiterado pelo presidente Lula, ao responsabilizar os pecuaristas pelos surtos de febre aftosa, que foram inegavelmente facilitados pela ausência de fiscalização e de suporte financeiro por parte do governo. Que era que eles queriam, se o governo estava guardando o dinheiro para pagar os credores e ser elogiado pelo FMI e por todos os agiotas a quem devemos e pagamos os juros com pontualidade exemplar, como deveremos continuar a pagar até o fim dos tempos? Mais um caso peculiar ao Brasil. Antes a economia ia bem, mas o povo ia mal. Agora o boi também vai mal. Azar o de ambos, o que interessa é a economia, é o que rende elogios e aplausos. É só mudar um pouco o enfoque para ver como o governo continua coerente, com um presidente que não se cansa de exaltar a própria paciência, apesar de achar que pode haver democracia demais, e se dá até ao sacrifício de ir pessoalmente à Rússia, explicar ao presidente de lá que não há perigo nesse deslize dos pecuaristas. O fato de que, enquanto isso, surgiram novos focos e mais países embargaram a carne brasileira ( cortando nossa própria carne, agora entendo o que ele queria dizer, vejam como a vida ensina e a gente demora a notar), só vai arrostar a paciência do presidente outra vez. É, precisamos cair na realidade. Afinal, que foi de tão mal que fizeram esses deputados agora em processo de cassação? Para começar, não usaram caixa dois, usaram dinheiro não contabilizado. Para terminar, pelo menos no caso dos petistas, ninguém ali pode ser acusado de corrupção, pois, segundo ainda o presidente, apenas cometeram erros. Atire a primeira pedra aquele que nunca cometeu erros. Acho que até o presidente, se puxar bastante pela memória, deverá lembrar uns dois. E o tempo voa, vem aí o Natal, vem o réveillon, vem o carnaval e vai-se perdendo tempo com essas bobagens. E clamando-se por punições esdruxulamente severas para os considerados culpados. Não está certo. Achei que o exemplo do ex-deputado Roberto Jefferson, que ganhou uma aposentadoria medíocre, ia pegar, mas há pessoas de má vontade que desejam punições maiores. Já não basta a chateação de ter de responder a processo, lidar com advogados e passar oito anos sem poder candidatar-se e continuar a sacrificar-se pelo povo? A que requintes de crueldade querem chegar, a que ponto se alçará a sanha vingativa das elites? (Não faço a menor idéia do que significa o que acabo de escrever, mas achei que soa como coisa do momento, assim chique, digamos.) Estremeço ao pensar em outro castigo que era dado nas escolas da minha juventude: escrever, com boa letra, centenas de vezes, uma frase como, por exemplo, "Prometo nunca mais vender voto em minha vida". Apesar de saber que muitos não resistiriam ao teste de escrever tanto e que no Brasil não existe pena capital, temo que haja quem deseje tais corretivos. Não, não, não será assim. O bom senso e o equilíbrio prevalecerão. Os culpados deverão ser punidos, sim. Acho que um mês sem sobremesa está de bom tamanho e de uma pedagogia bem moderna, tipo "mostrar limites". Cortando na própria pizza, se preciso for.
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