A boa política de Negrão para as favelas
SILVIO FERRAZ
O prefeito Cesar Maia definitivamente escolheu o morro. A cidade fica relegada ao quinto plano em suas preocupações e seus habitantes-contribuintes de elevados impostos, como o IPTU, assistem à favela placidamente tomar conta do espaço urbano, da mata atlântica, dos símbolos da cidade, como exemplarmente vem documentando este jornal. Além dessa invasão, os moradores do asfalto ainda são obrigados a ouvir do prefeito absurdos como "o morro é deles" e "a remoção é impossível". Para temperar mais a salada de absurdos, o prefeito salpica frases como "a verticalização no morro é melhor do que na orla, porque sombreia as praias".
Prefeito, a remoção não é a única solução para o crescimento desordenado dos chamados aglomerados subnormais, terminologia ao gosto de arquitetos, urbanistas e antropólogos. O governador Francisco Negrão de Lima, último a ser eleito pelo voto popular antes de a ditadura instituir a votação indireta pelo Congresso e assembléias, penou sob o tacão dos militares e dos tecnocratas que com ele compartilharam o poder em todo o seu mandato. Ditadura que tomou de assalto o falecido Banco Nacional de Habitação e fez da remoção sua única bandeira para as favelas. Remando contra a maré, Negrão teve a coragem de criar a Companhia de Desenvolvimento de Comunidades (Codesco) com o objetivo de resolver a questão das favelas: urbanizar ou desadensar
O lema da Codesco, atuante miniestatal com apenas 40 funcionários, era urbanizar favelas passíveis de integração aos bairros adjacentes. Novas ruas poderiam se ligar às existentes no bairro, assim como as redes de esgotos e águas pluviais. Integrá-las nas vantagens e desvantagens. Nada de construir creches ou escolas para o gueto modernizado. Os moradores da favela integrada teriam que entrar em filas junto aos vizinhos dos bairros do asfalto. Para as parcialmente urbanizáveis, a solução seria reduzir a densidade — removendo a parte remanescente para terrenos urbanizados, do Estado ou desapropriados, o mais próximo possível da ex-favela, para que continuassem próximo a seus empregos e não se apagassem os vínculos de convívio de seus moradores.
As chamadas favelas inurbanizáveis — que agrediam o coração da cidade, e cuja topografia e condições geológicas não possibilitariam a implantação de redes de esgoto sanitário, fornecimento de água e tampouco a ampliação de ruelas permitindo a passagem de ambulâncias, viaturas do Corpo de Bombeiros e polícia, estas, sim, seriam removidas integralmente.
Como a estatal de Negrão para esta finalidade só foi criada nos dois últimos anos de seu governo, apenas a então favela de Brás de Pina, com quase dez mil habitantes, foi totalmente urbanizada. E a favela Morro União — metade no plano e metade no morro — com cerca de sete mil habitantes, foi parcialmente urbanizada. O êxito começou pela aceitação dos moradores. O traçado de suas ruas foi escolhido democraticamente. O segundo fator que contribuiu para o êxito foi o financiamento do material de construção concedido pelo Estado, com recursos do BNH. Aí sim, tivemos uma política social — acesso às fontes de financiamento a juros reduzidos para a classe social que não podia enfrentar as tabelas price da vida. A inadimplência não ultrapassava 2% e as casas construídas pelos próprios favelados eram mais amplas que as do BNH.
O que seria feito, à época, nas favelas da Rocinha e do Dona Marta? Seriam removidas, aos poucos, para a região de Santa Cruz, nas vizinhanças do Distrito Industrial, então em construção. A proximidade com as fábricas garantiria empregos. Mesmo assim, a título de incentivo, os ex-favelados teriam isenção do pagamento de taxas municipais e estaduais durante uma década e transporte subsidiado até o limite da Zona Sul, para quem preferisse seu emprego. Tudo isso, no entanto, seria feito na base do convencimento, do diálogo. Naquela época, diga-se, os morros não eram depósitos de drogas, tampouco as quadrilhas os haviam ocupado. Havia clima para diálogo.
Hoje, há ainda condições para a recriação desse clima. Desde que o governo não chegue lá impondo sua fórmula — como no caso favela-bairro. Nesta última tentativa de intervenção habitacional, o governo sempre chegou com o bolo pronto. Quem quisesse comer, comesse. Não é assim. Bandido é uma coisa, favelado é outra. É gente boa. Favelado pode e deve opinar, como faz nas urnas. Dialogar é possível. O que o prefeito lamentavelmente está mostrando aos contribuintes é ter tomado irreversível partido pelos não-contribuintes, embora tanto um como outro compareçam às urnas com seus votos. Cesar fez sua escolha. Façamos a nossa: pagar IPTU, só na Justiça.
SILVIO FERRAZ é jornalista e foi diretor-executivo da Codesco, empresa estatal que urbanizou favelas do Rio no governo Negrão de Lima.
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