Devaneio das togas
"Maluf e seu filho foram soltos porque
o ministro Carlos Velloso, do STF, ficou
com pena do ex-prefeito. Não é piada.
É verdade"
No Brasil, país onde o presidente da República é contra a reeleição e vive em campanha reeleitoral, ocorrem coisas que nem a jabuticaba explica. Por exemplo:
No fim de setembro, escreveu-se neste mesmo espaço a seguinte frase: "Paulo Maluf e seu filho Flávio estão presos, mas não por muito tempo". Na quinta-feira passada, os dois foram soltos. Ficaram 41 dias presos. Era óbvio. A previsão não tinha nada de sofisticado. Afinal, ninguém desconhece que cadeia no Brasil é coisa destinada para abrigar pretos e pobres, sendo praticamente vetada para brancos abastados. A realidade, no entanto, conseguiu ser ainda mais vexatória que as previsões tradicionais: Paulo Maluf e seu filho foram libertados porque o ministro Carlos Velloso, do Supremo Tribunal Federal, ficou com pena do ex-prefeito. Não é piada. É verdade. Ao relatar o caso, o ministro Velloso aceitou a tese de que Flávio Maluf foi preso de forma ilegal e, horas depois, resolveu estender sua decisão ao ex-prefeito. A explicação do ministro: "Imagino o sofrimento de um pai preso na mesma cela que um filho. Isso me sensibiliza".
É uma excelente notícia descobrir que um membro da mais alta corte brasileira, em vez de comportar-se como um carrasco implacável, carrega no peito um coração generoso e sensível. Acontece que, por trás da decisão do ministro, referendada pela maioria de seus colegas, não existem só belos sentimentos humanos: o ministro Velloso entendeu que, para beneficiar pai e filho, deveria ignorar uma norma definida pelo próprio Supremo Tribunal Federal há dois anos. A norma diz que o tribunal não analisa pedidos de habeas corpus que tenham sido julgados apenas em caráter liminar pela instância inferior. Era o caso do habeas corpus dos Maluf. Isso significa que, se a norma do STF fosse respeitada, o STF não poderia ter examinado o assunto e, assim, os Maluf permaneceriam presos.
A pergunta óbvia é: em princípio, um ministro não deve ignorar uma norma para beneficiar quem quer que seja, mas alguém já viu um ministro fazer isso para beneficiar réu preto e pobre?
O espanto provocado pelo comportamento do ministro Carlos Velloso talvez só seja menor diante da desenvoltura autoritária do ministro Nelson Jobim, presidente do STF. No dia anterior à libertação dos Maluf, Nelson Jobim comandou a sessão em que se julgou ação proposta pelo ex-ministro José Dirceu. Jobim era abertamente a favor de aceitar a alegação de José Dirceu e mandar o Congresso Nacional suspender seu processo de cassação. Dirceu alegava que não podia perder o mandato de deputado porque na época do mensalão ele era ministro... Jobim era tão a favor da cascata de Dirceu que chegou a cabalar votos nos bastidores e, durante a sessão de julgamento, comportou-se como um coronel em reunião de senzala: intimidou colegas, questionou um, provocou outro, fez muxoxo ao ouvir o que não queria... Um espetáculo. Um show. Mas, por sorte e por sensatez, o STF decidiu que Dirceu pode, sim, ser punido como deputado por aquilo que fez como ministro.
A pergunta óbvia é: Jobim não deveria julgar-se impedido de analisar uma ação proposta por seu amigão José Dirceu?
Tem coisas que nem a jabuticaba explica.