Manaus -Naveguei pelo rio Negro num domingo de calor pegajoso. Buscava sinais da seca nesse mundo de águas. Podia vê-los usando binóculo ou a teleobjetiva da câmera. O rio recuou, as margens avançaram. No porto de Manaus, o recuo foi de 15 metros. A olho nu, a seca aparecia apenas na tensão dos pilotos, atentos às pedras e bancos de areia.
No sábado, sobrevoamos a calha do rio Solimões. Do alto, era um escândalo ver os leitos amarelados e secos de alguns afluentes. Milhares de peixes morreram nos lagos.
Quando descemos num campo de futebol de um distrito de Manicari, onde canos encalhados indicavam o isolamento, um ribeirinho me disse: "Os ventos estão soprando ao contrário nessa seca".
Pensei que aquela observação talvez pudesse interessar aos cientistas. Só uma mudança no regime dos ventos. Houve 21 tempestades tropicais nessa temporada no Caribe. As águas do Golfo do México esquentaram. E a Nasa afirma que 2005 será o ano mais quente desde 1890.
Alguns técnicos e políticos daqui acham que a crise é parte de um ciclo mais longo, pois se lembram de algo parecido há 50 anos. Confiam na regularidade da natureza, algo que aprendemos ao observá-la. As quatro estações se sucedem com uma rigorosa freqüência. Muitos sonhavam com essa regularidade na história humana, mas logo perceberam que ela é cheia de truques e de sobressaltos.
A história natural e a história humana, no entanto, não correm em leitos separados. Tanto fizemos que hoje a natureza não existe como algo intocado pela influência humana. Num efeito bumerangue, os milhares de refugiados ambientais são uma prova dramática da ação da natureza entre nós. Sem falar na inflação americana, linguagem cara aos mercados.
Os dados da Nasa são contestados. Ainda não são a prova. Como foram conseguidas as médias, como comparar épocas tão distintas em capacidade de aferição? Já o aquecimento do Atlântico Norte é difícil de contestar. Refugiam-se nessa aceitação como se refugiam na caixa de campanha aqui no Brasil. Aceita-se a parte para negar o todo.
Essa tática é recorrente nas CPIs: dividir o grande acontecimento em pequenas fatias, analisá-las exaustivamente. Um banco recebe a "pole position" para emprestar aos aposentados. Tempo para as provas. O mesmo banco empresta milhões a um partido político do governo. Tempo para as provas. O banco emprega a ex-mulher de um ministro. Não existem elos entre esses fatos, é possível contestá-los em parte, mas não em conjunto.
Irônico um partido que namorou o marxismo e cantava a Internacional apostar na dissociação como tática de defesa. De um modo geral, o caminho era outro. Quem não se lembra de alguma mesa de alguém se encostando no seu ombro em uma mesa de botequim e dizendo: "Amigo, vamos contextualizar".
O aquecimento global é um revólver fumegante, mas Bush não o vê como tal, apenas grandes tempestades e enchentes. Os dólares na cueca são o batom no contexto brasileiro. Mas se você levar o raciocínio fragmentário ao extremo, pode levantar a cueca imaculada e perguntar: "Onde está o batom, senhores jurados?".
Aceitar esse caminho é aceitar empobrecer mentalmente. Abster-se de formular hipóteses, estabelecer conexões, organizar os indícios. Ou você é condenado ao tédio das fatias isoladas da realidade ou escapa para o realismo mágico. Nele, os problemas são fruto da urucubaca.
Se aceitasse isso não teria falado tanto nos perigos biológicos, sobretudo nesse momento de globalização. Ao invés de ter lutado por vacina para cada cabeça de gado, estaria propondo um fundo para comprar figas e amuletos.
Esse é um momento muito estranho no Brasil. Romperam-se os elos do diálogo, mudaram os idiomas e sequer dispomos de interpretes simultâneos. Não são poucos os e-mails de pessoas que me perguntam se estão loucas.
Essa linguagem marota dos políticos, que os franceses chamam "langage du bois", é a pior resposta para problemas tão graves como o aquecimento global ou a extensa corrupção no Brasil. Quando um presidente diz que foi debelado o foco de aftosa no país e as notícias anunciam mais três, a gente acha mesmo que está louco. Isso é apenas uma maneira de conviver com a realidade.
Já pensou admitir assim, secamente, que eles já estão pra lá de Marrakesh?
No front nacional, é preciso encontrar intérpretes simultâneos, estabelecer uma convivência para exercer o dever de fiscalizar, já que, no mínimo, o governo está sob suspeita. Deveria desocupar a máquina do Estado, ficando apenas com os cargos de confiança essenciais para realizar seu programa.
No front do aquecimento global, torna-se evidente que os transtornos econômicos e sociais vão impor uma nova rota, embora sinuosa e tardia.
No caminho para o aeroporto de Manaus, ainda trazia comigo um amargo consolo: não são apenas os brasileiros que estão destruindo a Amazônia. Muito possivelmente, a floresta está sendo vítima também do estilo de vida planetário.
Bom tema de conversa para Bush e Lula. Não tenho provas. Apenas suspeito que seja um bom tema de conversa, num dos intervalos em que Bush não esteja ouvindo Deus nem Lula pelejando contra as urucubacas.
Entrevista:O Estado inteligente
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sábado, outubro 22, 2005
FERNANDO GABEIRA Aquecimento e corrupção: limites da dúvida
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