"Podem me crucificar, podem reclamar, mas,
se alguns direitos já andam restringidos,
nesse resto de democracia imagino que
a gente possa ao menos tentar se defender,
quando o Estado não nos protege, e votar
do jeito que parecer mais sensato"
A pergunta que seremos obrigados a responder nos próximos dias vem – como tantas coisas mais – muito malfeita. Presta-se a enganos também porque vem combinada com campanhas de entregar armas, trocar armas por brinquedos, por dinheiro, por sabe-se lá que mais.
Mas o plebiscito sobre armas não quer, na verdade, saber se somos contra alguém ter arma em casa: quer que a gente diga se aprova ou não a proibição do comércio de armas.
Uma leitura benevolente indicaria apenas desinformação no ato e na forma de realizar o plebiscito. Uma leitura mais cuidadosa nos faz lembrar regimes ditatoriais – do nazismo ao comunismo – que tiraram o direito do cidadão de se defender enquanto armavam polícias políticas e brigadas populares.
A grande perturbação do senso moral destes tempos, resultante da contínua afronta a valores mínimos capazes de garantir a estabilidade social, pode ser um indício de tempos negros – à direita, ou à esquerda.
Obviamente sei que andar armado e reagir a um assalto é quase sempre decretar a própria morte, neste país onde a violência impera, a droga predomina e o mau exemplo que vem de cima é assustador, como no caso dos deputados que a toda hora trocam sopapos no plenário, tornando a violência algo quase oficial.
Ilustração Atomica Studio |
Em lugar de apoiar esse confuso plebiscito, sou a favor do que não se faz: desarmar os bandidos; liquidar o narcotráfico ou reduzir seu poder; proibir a propaganda de bebida alcoólica, causadora de boa parte das mortes por arma de fogo e dos acidentes de trânsito fatais, e regulamentar severamente sua venda.
Também é preciso uma real vontade de acabar com a indecente corrupção por aqui, um terrível desestímulo para o cidadão comum, sobretudo jovem; resolver o descaso com policiais mal pagos e mal preparados, além de mal armados para a sua dura tarefa, na qual arriscam e muitas vezes perdem a vida. E não digam que não há dinheiro, pois sabemos que o problema é o seu mau uso.
Alardeia-se o desenvolvimento do Brasil; porém, até setembro, se aplicou na saúde pouco mais de 5% do orçamento do ano destinado à área: vejo todo dia jovens médicos desempregados e multidões de doentes desassistidos. Na educação, aplicou-se cerca de 15% do previsto: escolas são fechadas, outras deveriam fechar por não oferecer condições de higiene e segurança mínimas, por falta de professores ou de material; as universidades estão decadentes, mas ainda, demagogicamente, se multiplicam pelo país, sem nenhuma infra-estrutura, às vezes até sem instalações básicas ou professores.
A falta de horizontes para jovens profissionais é trágica, levando nossos filhos ao desalento ou a tentar a vida no exterior. Muitos têm sua adolescência prolongada, não por preguiça ou inépcia, mas porque não conseguem se afirmar no mercado de trabalho, mesmo com talento, preparo e títulos. Não é por nada que alguns começam a pensar: é realmente importante ter diploma, competência e honradez?
Fala-se em deflação, mas no meu bolso sobem as contas de luz, de telefone, de tudo o mais, sem falar no seguro-saúde, que tem de ser privado, pois o público assassina doentes nas filas de espera.
Não quero que a gente propicie aos malfeitores mais essa facilidade: saber que, estimulados pelo poder público, pais de família, agricultores, fazendeiros, estudantes, comerciantes, taxistas, todos os que estão desprotegidos em suas casas ou precisam circular por nossas ruas e estradas perigosas, foram oficialmente desarmados.
Podem me crucificar, podem reclamar, mas, se alguns direitos – saúde e educação, segurança e moradia, esclarecimento sobre gastos públicos e ética nas administrações – já andam restringidos, nesse resto de democracia imagino que a gente possa ao menos tentar se defender, quando o Estado não nos protege, e votar do jeito que parecer mais sensato.