Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, julho 26, 2005

Márcio Thomaz Bastos pode depredar o Direito brasileiro

Primeira Leitura
Por Reinaldo Azevedo

Márcio Thomaz Bastos vai se tornando, aos poucos, uma das figuras mais perigosas da República. E poucos se dão conta disso porque ele tem um discurso um pouco empoado — creio que boa parte dos parlamentares nem mesmo entende o que ele fala — e exerce um esquerdismo com punhos de renda muito ao gosto da elite bem nascida, mas cheia de vocação para "civilizar" a bugrada. Está longe de ser um homem bobo. Não mesmo. Criminalista, já conseguiu lavar com seu latim algumas reputações muito controversas. E não serei eu aqui a lhe lamentar a competência específica. Muito ao contrário. Admiro pessoas inteligentes. Mas ele é perigoso.

Matéria publicada nesta terça no Estadão dá conta de que o governo pretende equiparar o caixa dois de campanha à lavagem de dinheiro, como se fossem crimes equivalentes — na verdade, o mesmo crime. É um absurdo! E duas místicas estão por trás da intenção: moralizar o sistema e atender à indignação do presidente Lula com as lambanças que seu ex-tesoureiro andou fazendo. Não sei se choro pelo saber jurídico que Bastos quer nos impor ou se rolo de rir com a indignação de Lula.

Longe de mim defender caixa dois. Até os meus gastos domésticos estão numa planilha de Excel, pobre de mim, que não tenho um Marcos Valério pra chamar de amigo e nem fui descoberto por alguma empresa disposta a investir alguns milhões no meu talento. Culpa minha, também, que nunca fui monitor de jardim zoológico. Se é que vocês estão me entendendo. Tivesse feito a coisa certa e me interessado pelos hábitos secretos da zebra e do mico-leão-dourado, teria sido descoberto. Mas quê... Fui logo me apegar a prosopopéias, advérbios, estrelas e outros substantivos celestes...

Então, claro, não defendo caixa dois. Como não defendo, e é bom que doutor Márcio saiba, assassinatos, roubo de vidros de azeitona no supermercado, estupro, estacionar em local proibido, seqüestro, fumar no metrô, assalto a mão armada, atos obscenos em público, invasão da propriedade alheia, extorsão, desvio de dinheiro público, pular a catraca do ônibus ou fraude em licitação. Não defendo nem mesmo comida japonesa ou pum em elevador — sei que essas duas coisas não são tipificadas como crimes ou ilegalidades, mas deveriam.

Não defendo nada disso, é certo, mas, sem ter estudado Direito, como o doutor Márcio, que refinou a sua sabedoria com uma clientela sempre muito necessitada de seus saberes os mais recônditos, entendo que cada pena deve ser proporcional ao crime cometido. O princípio geral, para o leitor entender direito o que quero dizer, é o seguinte: se eu fosse um daqueles radicais que defendem a pena de morte para quem pratica assalto a mão armada, que punição eu vou defender, mais pesada do que a morte, para quem praticar um latrocínio — isto é, assalto seguido de homicídio?

Alguns parvos entendem que se deve pedir a dureza máxima mesmo para o assalto na presunção de que, assim, se coíbe o crime. São ruins de lógica: se a pena for a mesma para o assalto ou o latrocínio, o que se faz é banalizar o latrocínio em vez de se evitar o assalto. Entenderam? A única coisa que não pode, e é o que fazemos, é deixar sem punição tanto uma coisa como outra.

É ridículo querer equiparar caixa dois de campanha com crime de lavagem de dinheiro porque caixa dois de campanha não é lavagem de dinheiro. Eu detesto ter de ser tautológico para evidenciar a besteira que vai na proposta. E que, se apresentada mesmo ao Congresso, tende a ser aprovada porque combatê-la daria a entender leniência com o caixa dois. Mas é tolice.

A lavagem de dinheiro tem duas origens principais, qualquer especialista sabe: narcotráfico e contrabando. E está sempre associada a uma espécie de máfia, seja a máfia ela-mesma, aquela à italiana, sejam outras que seguem padrão similar, adaptadas à cor e à geografia locais: a colombiana, a russa, a chinesa, a brasileira... Mas é basicamente o dinheiro da droga e do contrabando, com seus subprodutos associados — jogo e prostituição — em busca de uma aparência legal.

O caixa dois de campanha, como se vê e temos visto, é outra coisa — e não pensem que estou aqui caindo na conversa da Operação Paraguai. O esquema Valério-PT-Delúbio é outra coisa, bem diferente. Trata-se de associação para assaltar o Estado e fraudar a democracia, comprado um dos Poderes da República, quiçá os três. É outra coisa. Mas volto: o caixa dois de campanha, na maioria das vezes, nasce da contribuição de empresas a partidos políticos que preferem não se identificar por duas razões nada meritórias: 1) ou porque esperam compensação do vitorioso depois; 2) ou porque temem se indispor com um dos lados e sofrer retaliação caso o outro seja o vitorioso. Sim, nasce de um crime ou da presunção dele.

Mas não é, e não pode ser encarado, como crime idêntico a traficar cocaína, armas, explorar jogo ilegal ou prostituição. Não pode porque não é a mesma coisa. Pode-se até argumentar que aquele mesmo dinheiro mafioso pode buscar se imiscuir nas campanhas eleitorais por meio do caixa dois, como sugere ao menos uma das linhas de investigação da morte de PC Farias. Ocorre que o dinheiro ilegal, se estiver determinado a entrar na política, pode comprar partidos inteiros se quiser. Aqui ou em qualquer lugar do mundo.

A aparente rigidez da proposta tem de ineficiente o que tem de demagógico. Por mais que eu ache Delúbio Soares nefasto para o país, não me parece que ele deva ser equiparado a Pablo Escobar (ou sei lá quem é o chefão da hora do narcotráfico). De resto, superestimar o caixa dois de campanha, agora, parece só uma tentativa de dar uma resposta política à crise, motivada pela necessidade de Lula de demonstrar energia no combate àquele que seria o cerne do problema do Brasil no momento.

E o cerne do problema do Brasil no momento, definitivamente, não é este. A questão é muito mais ampla. O que temos de debater é outra coisa. O que temos de debater é se é normal um partido ter a Presidência da República, uma central sindical e braços em entidades empresariais como o sistema "S" da indústria, por exemplo. O que temos de debater é se é aceitável um partido ter, porque tem, o controle do paraoficial MST, do Incra, do Banco do Brasil, da CEF e dos Fundos de Pensão. O que temos de discutir é se é normal um partido dominar a quase totalidade das ONGs ou os aparelhos representativos das universidades. Vejam só: eis o esquema de aparelhamento que se está pretendo manter intocado com essa conversa mole de que o problema do país é caixa dois. Não é.

Mas Márcio Thomaz Bastos é um dos homens mais espertos do país. Se inteligente, aí já não sei, porque exijo mais rigor para preencher o conteúdo dessa palavra. Está, como se dizia quando eu era menino e pensava como menino (by Paulo de Tarso), radicalizando o discurso para esconder o problema.

Um partido chamado PT, liderado por um senhor chamado Luiz Inácio Lula da Silva, seu maior patrimônio, vinha-se assenhoreando de franjas do Estado brasileiro havia 23 nos, até que, em 2003, conquistou o Estado e montou uma gigantesca máquina inédita no país para se perpetuar no poder. Dessa máquina, é possível, muitos se locupletaram pessoalmente, sem prejuízo de que a construção obedecia a um princípio e a uma visão de mundo. Utilizou, entre outras coisas, caixa dois. E é possível que tenha também lavado dinheiro desse ou daquele. Mas seu crime é único, é mais grave, é político, é de lesa-democracia.

De resto, Bastos está querendo nos vender barato a indignação de Lula. Se estava mesmo indignado, poderia ter tomado providência em fevereiro de 2004, quando Miro Teixeira o advertiu do mensalão. Nada fez. Por que não fez? A tese é um truque vulgar, com chances de prosperar.  Quando o uso do caixa dois for tão grave quanto o uso do dinheiro decorrente da lavagem, certamente aumentará a presença da grana decorrente da lavagem na política. Afinal, caso tudo dê errado, a pena é a mesma. Caso dê certo, o spread é maior.

Doutor Márcio, faça um favor à sua biografia e ao país: não deprede o direito em nome de um projeto de poder que já foi para a cucuia.

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