Com esperança de sobreviver à crise,
Lula minimiza os escândalos, segue sua
"intuição" e cumpre agenda de candidato
Otávio Cabral e Thaís Oyama
J. F. Diorio |
NO MUNDO DO LULA O presidente em Bagé: mensalão, dólar na cueca e Land Rover – tudo "diz-que-diz", segundo Lula, apesar de todas as provas de que o governo chafurda na corrupção |
Há duas semanas, a agenda do presidente Lula sofreu uma guinada. Antes voltada principalmente para viagens e despachos internos, ela se converteu em um festival de barulhentos eventos públicos, presenciados por gigantescas platéias sempre simpáticas ao presidente. Lula falou para metalúrgicos, petroleiros, cegonheiros e esportistas. Vestiu poncho em Bagé (RS), almoçou num bandejão em Duque de Caixas (RJ) e escalou um barranco em Canoas (RS). Em todas as ocasiões, carregou no improviso. Proclamou que "as elites" não lhe fariam "baixar a cabeça", avocou para si outra vez o título de cidadão mais ético do Brasil e evocou seu arquiconhecido passado de pobreza. O que chegou a ser interpretado como uma saída à la Hugo Chávez – o presidente venezuelano que, acuado pela oposição, socorreu-se junto às massas para mudar a Constituição – é, na verdade, outra coisa. Com sua agenda e discurso populistas, Lula está, sim, tentando costurar uma aliança com os eleitores de baixa escolaridade e pouca renda, mas não com a intenção de proteger-se de uma tramóia das tais elites que tanto fustiga ou de uma eventual ameaça de impeachment. Lula voltou a sonhar com a reeleição. E já está em campanha.
Dois fatores contribuíram para essa decisão que é mais um sinal do autismo institucional do presidente. O primeiro foi a divulgação de pesquisas apontando o grau de desgaste sofrido por seu governo desde a eclosão do escândalo do mensalão. Embora os institutos tenham identificado um aumento de até 5 pontos no segmento de brasileiros que classificam o governo do PT como ruim ou péssimo, Lula considerou os resultados satisfatórios. E passou a observar atentamente as oscilações do eleitorado. Há duas semanas, pediu ao seu chefe de gabinete, Gilberto Carvalho, que ligasse para o diretor de um dos mais importantes institutos de pesquisa do país. Queria saber se os números haviam mudado. Diante da resposta negativa, disse, aliviado: "Está bom. E vai melhorar". Pouco antes, em uma reunião com Gilberto Carvalho e um ministro com sala no Planalto, o presidente já havia sinalizado a intenção de voltar aos palanques (partindo-se do pressuposto otimista de que ele chegou a sair deles nestes dois anos e meio de governo). No encontro, foi confrontado com duas possibilidades de compromisso para determinado dia. O ministro defendia uma agenda política, Gilberto Carvalho propunha um evento público. O presidente optou pelo evento público. Diante da decepção do ministro, justificou sua escolha com a seguinte provocação: "Quantos votos essa sua agenda aí vai me dar?" O ministro se calou.
Antonio Milena/ABR | Joedson Alves/AE |
Agliberto Lima/AE | PODER, ATÉ AGORA, SO NO PAPEL Promovidos por força da queda em série de ministros do primeiro time, Jaques Wagner, Luiz Dulci e o secretário André Singer (foto acima) até tentam, mas não conseguem influenciar o presidente |
Lula está decidido a seguir sua "intuição". Desde que a crise engoliu alguns de seus ministros mais próximos (José Dirceu, arrastado da Casa Civil pelo furacão Roberto Jefferson; Luiz Gushiken, combalido com as denúncias em torno de seu envolvimento com os fundos de pensão; e Aldo Rebelo, liberado da longa agonia vivida na Coordenação Política), ele tem dispensado conselhos e rechaçado – algumas vezes aos gritos – as críticas que pouquíssimos auxiliares se atrevem a lhe fazer. O discurso em que atacou "as elites", por exemplo, não lhe foi soprado por ninguém. Saiu diretamente da cabeça presidencial e foi considerado um escorregão feio por pelo menos dois ministros: Antonio Palocci, da Fazenda, e Márcio Thomaz Bastos, da Justiça. Diante das críticas, Lula não deu o braço a torcer, pelo contrário: insistiu que estava certo e chegou a alterar o tom de voz em uma conversa sobre o assunto.
O desagrado ao discurso, porém, não foi unânime entre os seus auxiliares. Luiz Dulci, por exemplo, gostou. O secretário-geral da Presidência, promovido no vácuo deixado pela queda em série dos ministros do primeiro time, é partidário da tese estapafúrdia da "necessidade de mudanças na economia". Defende o endurecimento do discurso de Lula e sua aproximação com as classes C, D e E. Jaques Wagner – outro que ascendeu no curso dos escândalos, trocando o modorrento (e inócuo) Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social pela pasta da Coordenação Política – é tido, por enquanto, mais como um "amigão" de churrascos do presidente do que propriamente como um conselheiro. André Singer, embora se esforce para aumentar sua influência junto a Lula (o que inclui até mesmo longas rodadas de carteado com a primeira-dama Marisa Letícia da Silva), ainda está longe de ser levado em conta como estrategista de comunicação. Lula, portanto, vem agindo cada vez mais por conta própria. Tem pedido a governadores aliados que programem eventos populares em suas regiões. Em breve, deverá fazer uma grande viagem pelos estados do Norte, onde, segundo as pesquisas, seu apoio segue praticamente inalterado.
Joedson Alves/AE |
ALVO TUCANO O presidente do PSDB, Eduardo Azeredo: acusação de envolvimento em operação heterodoxa para financiar campanha |
A iniciativa de Lula de se aproximar de seu eleitorado histórico tem origem em dois fatores. O primeiro é de ordem pessoal e se assemelha àquilo que a psicanálise chama de processo de regressão. Acuado, Lula, numa espécie de movimento reflexo, volta-se para o segmento que lhe deu origem, aquele em que se sente mais acolhido. No seu caso, os movimentos populares de base. A segunda razão é de caráter estratégico: três especialistas em pesquisas de opinião ouvidos por VEJA concordam que, neste momento, o petista ainda tem condições de se reeleger e age de forma oportuna ao concentrar esforços na fatia do eleitorado que lhe permanece fiel. Os especialistas, no entanto, afirmam que essa situação só tem chances de se manter sob uma condição: se não se revelar nenhuma denúncia que atinja Lula diretamente. E não cabe a eles, evidentemente, entrar no mérito do comportamento de um presidente que, no lugar de preocupar-se com a faxina ética que deveria estar comandando, está mais interessado no próprio umbigo. Na semana passada, Lula voltou a repetir a um amigo que tem certeza de que nada irá respingar nele. Na conversa, vociferou contra aqueles que o teriam traído (o ex-ministro José Dirceu, o ex-tesoureiro Delúbio Soares, o ex-secretário Silvio Pereira e o ainda deputado João Paulo Cunha) e confirmou que continua candidatíssimo em 2006. Disse que só abre mão da tentativa de reeleger-se se, a médio prazo, sua popularidade despencar. Neste caso, afirmou, defenderá o nome do ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes (PPS), para o seu lugar. "Do PT eu não apóio ninguém."
Um outro episódio contribuiu para aumentar as esperanças do presidente de chegar razoavelmente inteiro às eleições presidenciais de 2006: a entrada dos tucanos no valerioduto. Na terça passada, surgiram indícios de que o esquema montado pelo empresário Marcos Valério para abastecer os cofres do PT pode ter beneficiado também o PSDB. Segundo revelou o jornal O Globo, em 1998 o PSDB de Minas Gerais teria recorrido a operações heterodoxas para financiar a campanha à reeleição do governador tucano Eduardo Azeredo. De acordo com a denúncia do jornal, em agosto daquele ano a agência de propaganda DNA, de Valério, contraiu um empréstimo de 11,7 milhões de reais no Banco Rural (sempre ele), em Belo Horizonte. A agência, conforme documentos reproduzidos pelo jornal, ofereceu como garantia ao financiamento contratos assinados com as secretarias de Comunicações e de Governo de Minas Gerais, estado então sob a gestão Azeredo. No mesmo período, a SMPB, outra agência de Valério, repassou dinheiro para cerca de setenta pessoas – entre elas políticos e gente ligada a lideranças que apoiavam Azeredo. O dinheiro repassado alcançou a cifra de 1,6 milhão de reais, em um esquema que lembrou o protagonizado pela dobradinha Delúbio-Valério. Azeredo, hoje presidente do PSDB, nega ter tido conhecimento do empréstimo e já se dispôs a depor sobre o assunto na CPI dos Correios.
No mesmo dia em que O Globo publicou a reportagem, o ex-presidente Fernando Henrique afirmou que é preciso "passar o Brasil a limpo" mas que o que aconteceu no seu governo "é coisa da história". Foi uma afirmação equivocada. Um crime, se comprovado, não perde sua natureza criminosa e "vira" história com o simples passar dos anos. Fernando Henrique, no entanto, chama atenção para a questão certa quando diz que o surgimento de denúncias contra tucanos não pode servir de pretexto para que se perca o foco na apuração do escândalo atual – mais grave e muito mais amplo. E muito menos para que, por força do espírito corporativo dos políticos, se costure uma espécie de anistia geral que permitirá que se safem alegremente da confusão tanto os agraciados pelo mensalão quanto os beneficiados por caixas dois.
Declarações dadas na semana passada por Lula e seus auxiliares não autorizam esperanças de que isso não acontecerá. Sem esperar a chancela da CPI nem da Justiça, o presidente decidiu, por sua própria conta, reduzir a avalanche de denúncias que ameaçam soterrar seu governo e seu partido a "um tal de diz-que-diz". Na quinta-feira, o ex-ministro da Educação e presidente do PT, Tarso Genro, declarou: "Quando ficar demonstrado que a corrupção é sistêmica, as coisas já começarão a tomar novo rumo". Novo rumo? Bem, a convocação de Dirceu à CPI dos Correios foi postergada. O PL tenta um acordo com o denunciante e réu confesso Roberto Jefferson para salvar seus deputados em troca da retirada do pedido de cassação do petebista. O presidente do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, em uma intromissão flagrantemente indevida e fora de hora, afirmou que um eventual impeachment do presidente irá comprometer a governabilidade do país. Lula, do alto de seu palanque imaginário, exibe um sorriso de orelha a orelha. Já fareja o cheiro de pizza.
Otávio Cabral e Thaís Oyama
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