Muitas analogias têm sido feitas entre o atual governo e o do ex-presidente Collor. Afora a questão dos montantes, que parecem ser muito mais elevados sob a égide petista, a corrupção atual tem duas características que a distinguem: o seu caráter sistêmico e a sua finalidade político-partidária. Sistêmica a corrupção o é por ter sido feita por meio de uma simbiose entre o partido e o governo que atinge a máquina estatal como um todo, estabelecendo uma articulação entre o PT, empresas estatais, empresas privadas, sobretudo de publicidade e bancos, e o governo. Criou-se todo um aparelho sob o comando de dirigentes partidários e governamentais que passou a reger as relações políticas. Político-partidária porque a corrupção tinha o propósito de assegurar a hegemonia do PT sobre o Estado via corrupção de outros partidos e do próprio Poder Legislativo.
Os partidos que se prestaram a esse grande negócio eram literalmente comprados, tornados venais, como se essa venalidade nada mais fosse do que a conseqüência desse projeto de poder. A democracia foi assim corroída de dentro, exibindo uma prática leninista de desprezo pelas instâncias representativas, como se o Parlamento fosse mero instrumento de um projeto mais amplo, 'socialista', que poderia ser implantado num eventual segundo mandato. O dinheiro ia principalmente para o partido, embora já apareça que os 'apparatchiks' também se tornaram 'apparatchiques', enriquecendo individualmente. A mentira é outro elemento dessa corrupção 'política', pois ela corresponde a uma certa prática de poder, não sendo casual. Delúbio e Silvinho Pereira são defendidos por advogados pagos pelo partido e não foram nem suspensos por este. Nem as aparências são guardadas.
Neste sentido, a mentira não é apenas uma forma de ocultar algo, atos ilícitos ou imorais, mas, segundo o uso que dela é feito pelo PT, é também um instrumento político, de controle sobre os outros partidos e as instituições democráticas. Os rastros que estão sendo revelados, por demais evidentes, exibem uma forma de impunidade, como se o partido e seu governo fossem onipotentes, não estando obrigados a seguir as regras republicanas. Estas, no entanto, estão sendo fortalecidas pela imprensa, pelos meios de comunicação e por CPIs e outras comissões que estão resgatando o sentido mesmo de coisa pública. Há, portanto, um problema moral e um político da mentira. O problema moral surge quando políticos velam o que estão fazendo com o intuito de aproveitarem uma determinada situação para dela extraírem proveitos próprios. Tal é o caso mais comum da corrupção, em que certos indivíduos ou partidos tiram benefícios de sua posição de poder com o intuito, por exemplo, de enriquecerem. No passado, esse tipo de político se pautava pelo lema 'rouba, mas faz'. O produto do roubo era normalmente utilizado para o enriquecimento pessoal. A repercussão política de tal prática consiste, porém, no enfraquecimento da cena pública, pois as instituições são apropriadas privadamente por alguns, perdendo o seu caráter universal.
O problema político caracteriza-se pelo uso sistemático da mentira enquanto meio de exercício do poder. O seu caso extremo se configura nos regimes totalitários, nos quais, graças à ausência completa de liberdade de imprensa e de expressão, os que detêm o poder o exercem sem nenhum tipo de constrangimento, impondo à população o que eles pretendem que ela creia. Há modos intermediários, que apresentam diferentes formas de autoritarismo, dependendo de sua realização. Em todo caso, podemos nomear uma determinada prática da mentira como leninista. Ou seja, ela se torna um meio não apenas de ocultamento dos reais desígnios da ação, mas também de imposição de uma certa concepção das coisas. Pense-se nas primeiras reações da cúpula petista diante da corrupção escancarada por Roberto Jefferson e, sobretudo, pela mídia.
Primeiro ato: houve a negação do ocorrido. A 'entrevista' concedida por Delúbio sob a proteção de Genoino foi de pura e simples denegação dos fatos. Mensagem implícita: nada aconteceu, o partido é ético e nós manteremos o mesmo projeto de poder. Segundo ato: o protagonista foi Delúbio, quando, numa reunião em Goiânia, declarou que tudo decorria de uma armação da 'direita'. Mensagem implícita: nada ocorreu, somos éticos e a direita está tramando a nossa derrota. Trata-se da doutrina do bode expiatório. Houve outros atos, como o do 'golpe', que se encaixam na mesma análise, procurando tudo trazer para uma oposição direita/esquerda, tendo como pano de fundo a ameaça de uma mobilização popular. Na verdade, o que está em questão é: República ou desestruturação das instituições democráticas. A tarefa que se impõe, sobretudo de parte do Congresso Nacional, é o resgate do sentido da coisa pública por meio de uma punição exemplar dos envolvidos. Bons exemplos fazem avançar a democracia, maus a fazem perder.?
Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na UFRGS. E-mail: denisrosenfield@terra.com.br
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