Depoimento da mulher de Marcos Valério
representou vitória estrondosa da família
sobre o Estado
Imagine-se o leitor, ou a leitora, morador(a) do exclusivo condomínio Retiro do Chalé, ao sul de Belo Horizonte, perto da casa onde mora a senhora Renilda Santiago Fernandes de Souza. Que sorte contar com uma vizinha como essa. A aparência, os modos, a fala, não deixam dúvida – é uma pessoa em quem se pode confiar. É o tipo de pessoa a que se pode recorrer de olhos fechados, se um dia surgir o problema de ter de deixar as crianças com alguém.
Renilda é a mulher do hoje célebre Marcos Valério Fernandes de Souza, e não há nenhuma ironia no que acima se disse dela. Seu depoimento na CPI dos Correios, na semana passada, não deixou dúvidas de que é uma dona-de-casa, mãe e esposa exemplares. Também não há razão para supor que o marido seja menos prestimoso nos assuntos privados. Agora, vá o leitor, ou leitora, entregar uma prefeitura ao casal, um governo de estado, um ministério... No governo da casa e da vida íntima, pode haver igual, como disse outro dia de si próprio o presidente Lula, sobre o respeito aos mandamentos da ética, mas melhor impossível. Já quando se dá à dupla a chave do Erário...
A apresentação da senhora Marcos Valério foi, de longe, o que de melhor ofereceu, até agora, a CPI. E não apenas pelo que ela declarou ou deixou de declarar sobre o caso em si ora em investigação. Aquela senhora bonita e de fino trato, fortíssima por um lado e frágil de se desmanchar em lágrimas por outro, proporcionou-nos uma aula de Brasil ao pôr diante dos olhos do público um embate velho como o país – o da família contra o Estado. Terça-feira passada foi o dia em que, por artes de Renilda, essas duas entidades se defrontaram ao vivo pela TV, direto da sala da CPI, com resultados consagradores para a família e humilhantes para o Estado.
O Estado, ao contrário, mais uma vez, do que pensa o presidente Lula, não é uma extensão da família. O presidente gosta de posar de pai dos brasileiros e de comparar o andamento do governo a uma criança que aprende a andar, depois vai à escola etc. É má pedagogia. No clássico Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda ensina que Estado e família pertencem a "ordens diferentes em essência". Só pela "transgressão da ordem doméstica e familiar" – vale dizer, em complemento ao mestre, pela superação do universo dominantemente afetivo, particularista e egoísta que é o da família – "é que nasce o Estado". O simples indivíduo torna-se então "cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável perante as leis da cidade". Há nessa transformação, conclui o autor, com a habitual e elegante clareza, "um triunfo do geral sobre o particular, do intelectual sobre o material, do abstrato sobre o corpóreo".
Que dificuldade, no Brasil, em distinguir uma ordem da outra. Quando o indivíduo entra na órbita da administração do Estado, seja por eleição, nomeação, apadrinhamento ou mesmo pela simples relação de amigo do amigo – caso de Marcos Valério –, nada é mais comum do que arrastar consigo os valores familistas do afeto, do particularismo e do egoísmo. Na época dos escândalos de Collor, uma conhecida senhora, dessas que são classificadas de "socialite", disse, em defesa do caçador de marajás: "No momento em que você ocupa um cargo que o favoreça de alguma forma, acho até um pouco de burrice não aproveitar a situação". A frase, de comovente candura, tem como corolário que, se você não "aproveita", estará prejudicando a família. Quantos, aberta ou ocultamente, não partilhariam o mesmo pensamento, por estes Brasis tão ardentes de amor familiar e tão órfãos de respeito à esfera pública? É muito fácil execrar "os políticos" e escandalizar-se com a corrupção. Raro é examinar no mais recôndito da consciência como seria o próprio comportamento caso se tivesse o Erário ao alcance da mão.
O que faz Renilda tão fascinante é que ela não está sozinha. Ela representava, naquela cadeira da CPI, tão vulnerável e ao mesmo tempo tão esperta, tão digna de pena e tão digna de raiva, um tipo que brota com a fartura do chuchu, por estes solos, em especial entre as pessoas de sua classe social. Renilda se disse "um pouco leoa" quando se trata de defender a família. Exibiu avassaladora devoção aos filhos e ao marido. E disse que proibia terminantemente encontros políticos ou de negócios no sagrado recesso do lar. Quanto ao vertiginoso crescimento de sua conta bancária, do patrimônio familiar e de seu nível de vida, coincidindo com a entrada em cheio do marido no mundo da política, ela nem reparou. Não podia ser mais agudo o contraste entre a atenção da leoa do lar quando o que está em jogo é o bem-estar dos seus e a desatenção de gata preguiçosa com respeito aos meios pelos quais o marido lhe ia aumentando os luxos. A ética, para Renilda – e para as Renildas, a multidão de Renildas e Renildos que no Brasil garantem a vitória permanente da roubalheira e do atraso –, é um valor tão sagrado que, assim como o afeto, a confiança e o respeito, deve ser reservado única e exclusivamente à família.
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