Entrevista:O Estado inteligente

sábado, julho 30, 2005

Roberto Pompeu de Toledo Leoa de um lado, gata distraída do outro

VEJA

Depoimento da mulher de Marcos Valério
representou vitória estrondosa da família
sobre o Estado

Imagine-se o leitor, ou a leitora, morador(a) do exclusivo condomínio Retiro do Chalé, ao sul de Belo Horizonte, perto da casa onde mora a senhora Renilda Santiago Fernandes de Souza. Que sorte contar com uma vizinha como essa. A aparência, os modos, a fala, não deixam dúvida – é uma pessoa em quem se pode confiar. É o tipo de pessoa a que se pode recorrer de olhos fechados, se um dia surgir o problema de ter de deixar as crianças com alguém.

Renilda é a mulher do hoje célebre Marcos Valério Fernandes de Souza, e não há nenhuma ironia no que acima se disse dela. Seu depoimento na CPI dos Correios, na semana passada, não deixou dúvidas de que é uma dona-de-casa, mãe e esposa exemplares. Também não há razão para supor que o marido seja menos prestimoso nos assuntos privados. Agora, vá o leitor, ou leitora, entregar uma prefeitura ao casal, um governo de estado, um ministério... No governo da casa e da vida íntima, pode haver igual, como disse outro dia de si próprio o presidente Lula, sobre o respeito aos mandamentos da ética, mas melhor impossível. Já quando se dá à dupla a chave do Erário...

A apresentação da senhora Marcos Valério foi, de longe, o que de melhor ofereceu, até agora, a CPI. E não apenas pelo que ela declarou ou deixou de declarar sobre o caso em si ora em investigação. Aquela senhora bonita e de fino trato, fortíssima por um lado e frágil de se desmanchar em lágrimas por outro, proporcionou-nos uma aula de Brasil ao pôr diante dos olhos do público um embate velho como o país – o da família contra o Estado. Terça-feira passada foi o dia em que, por artes de Renilda, essas duas entidades se defrontaram ao vivo pela TV, direto da sala da CPI, com resultados consagradores para a família e humilhantes para o Estado.

O Estado, ao contrário, mais uma vez, do que pensa o presidente Lula, não é uma extensão da família. O presidente gosta de posar de pai dos brasileiros e de comparar o andamento do governo a uma criança que aprende a andar, depois vai à escola etc. É má pedagogia. No clássico Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda ensina que Estado e família pertencem a "ordens diferentes em essência". Só pela "transgressão da ordem doméstica e familiar" – vale dizer, em complemento ao mestre, pela superação do universo dominantemente afetivo, particularista e egoísta que é o da família – "é que nasce o Estado". O simples indivíduo torna-se então "cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável perante as leis da cidade". Há nessa transformação, conclui o autor, com a habitual e elegante clareza, "um triunfo do geral sobre o particular, do intelectual sobre o material, do abstrato sobre o corpóreo".

Que dificuldade, no Brasil, em distinguir uma ordem da outra. Quando o indivíduo entra na órbita da administração do Estado, seja por eleição, nomeação, apadrinhamento ou mesmo pela simples relação de amigo do amigo – caso de Marcos Valério –, nada é mais comum do que arrastar consigo os valores familistas do afeto, do particularismo e do egoísmo. Na época dos escândalos de Collor, uma conhecida senhora, dessas que são classificadas de "socialite", disse, em defesa do caçador de marajás: "No momento em que você ocupa um cargo que o favoreça de alguma forma, acho até um pouco de burrice não aproveitar a situação". A frase, de comovente candura, tem como corolário que, se você não "aproveita", estará prejudicando a família. Quantos, aberta ou ocultamente, não partilhariam o mesmo pensamento, por estes Brasis tão ardentes de amor familiar e tão órfãos de respeito à esfera pública? É muito fácil execrar "os políticos" e escandalizar-se com a corrupção. Raro é examinar no mais recôndito da consciência como seria o próprio comportamento caso se tivesse o Erário ao alcance da mão.

O que faz Renilda tão fascinante é que ela não está sozinha. Ela representava, naquela cadeira da CPI, tão vulnerável e ao mesmo tempo tão esperta, tão digna de pena e tão digna de raiva, um tipo que brota com a fartura do chuchu, por estes solos, em especial entre as pessoas de sua classe social. Renilda se disse "um pouco leoa" quando se trata de defender a família. Exibiu avassaladora devoção aos filhos e ao marido. E disse que proibia terminantemente encontros políticos ou de negócios no sagrado recesso do lar. Quanto ao vertiginoso crescimento de sua conta bancária, do patrimônio familiar e de seu nível de vida, coincidindo com a entrada em cheio do marido no mundo da política, ela nem reparou. Não podia ser mais agudo o contraste entre a atenção da leoa do lar quando o que está em jogo é o bem-estar dos seus e a desatenção de gata preguiçosa com respeito aos meios pelos quais o marido lhe ia aumentando os luxos. A ética, para Renilda – e para as Renildas, a multidão de Renildas e Renildos que no Brasil garantem a vitória permanente da roubalheira e do atraso –, é um valor tão sagrado que, assim como o afeto, a confiança e o respeito, deve ser reservado única e exclusivamente à família.

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