Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, julho 28, 2005

Ricardo A. Setti Crise mostra o quanto Lula se apequenou


No mínimo                                                                                              

Um dos aspectos lamentáveis da crise provocada pelas denúncias do "mensalão" vem sendo a reação do presidente da República. Da recusa frontal de encarar os fatos, como se vivesse em Marte ou Plutão, Lula passou para evasivas, depois começou a tratar do assunto indiretamente para, finalmente, como tem ocorrido nos últimos dias, lançar-se à ofensiva, acusando demagogicamente a "elite" de querer fazê-lo "baixar a cabeça" e falando grosso com a oposição.

Quem ansiava por um soco na mesa de parte de um presidente que se autoproclama campeão indisputado da ética, uma puxada de tapete na ladroagem que transmutasse a crise em oportunidade para uma "Operação Mãos Limpas" à brasileira, pode esperar sentado. O que admira, quanto à reação de Lula à crise, não é a forma como o presidente reagiu, mas o fato de que ainda se esperasse dele coisa diferente da ziguezagueante retórica que despeja em seus improvisos, ora falando em "cortar na própria carne", ora claramente querendo tirar o foco do problema principal – suspeita de gravíssima ladroagem em seu partido, o PT, e em seu governo.

Pois a realidade é que Lula, ao enfrentar a crise, mostra-se um líder pequeno, amesquinhado, medíocre. Não muito diferente do Lula presidente, que fez e faz um governo pouco acima do rés-do-chão e no qual o ponto tido como forte, a economia, resulta de um misto da aplicação ainda mais férrea da outrora criticada ortodoxia do antecessor Fernando Henrique Cardoso com um conjunto de condições externas extremamente favoráveis.

Também nada diferente do Lula líder político que, eleito para estabelecer uma diferença moral na forma de fazer política "neste país", julgou necessário, para governar, aliar-se a uma arca de Noé partidária repleta de fisiológicos e oportunistas, entre os quais retalhou nacos do poder a três por quatro, a um preço que se constata agora altíssimo – sem mesmo assim conseguir, no Congresso, uma base parlamentar minimamente confiável, pelo contrário.

O líder sindical de biografia extraordinária, o retirante nordestino sem eira nem beira que, ao final de uma trajetória incansável de lutas, colocou no peito a faixa presidencial como depositário das esperanças de 53 milhões de eleitores – o quarto presidente mais votado, em números absolutos, em toda a história das democracias –, chegou lá e não deu conta do recado. Foi um titã enquanto homem de oposição, é fraco como presidente. Apequenou-se, enfim. É uma pena, mas acontece com freqüência na história dos países de qualquer porte.

A Rússia pós-queda do Muro de Berlim, por exemplo, não teve um líder à altura do momento histórico: se ao presidente Boris Yeltsin não faltaram coragem e carisma para derrotar uma tentativa de golpe do agonizante Partido Comunista e das Forças Armadas para derrubar Mikhail Gorbachov e empalmar o poder na então União Soviética, ao governar permitiu a entrega de grande parte do patrimônio público a políticos sem escrúpulos, a derrocada da economia, a proliferação de quadrilhas mafiosas infiltradas no Estado, o sucateamento dos serviços públicos e um cataclisma social de que a sociedade russa até hoje não se recuperou.

Fernando de la Rúa, na Argentina, assomou ao poder em uma aliança capitaneada por sua União Cívica Radical para reverter o desastre econômico provocado pela miragem do peso ancorado no dólar e varrer a corrupção, ambos obra do populismo delirante do peronista Carlos Menem. No entanto, terminou convocando para o governo o próprio artífice da política contra a qual a maioria do eleitorado votara – o ministro da Economia, Domingo Cavallo –, e deixou a Casa Rosada escorraçado por multidões em fúria. Os sandinistas da Nicarágua, condutores de uma revolução popular longa, sofrida e sangrenta, terminaram, uma vez derrotada a ditadura da família Somoza, colocando no poder dirigentes liberticidas que, mais adiante, já com o país vivendo uma democracia, revelaram-se igualmente ladrões do Erário.

É claro que o giro da história também faz com que, em circunstâncias extraordinárias, surjam líderes extraordinários nas democracias. A Grande Depressão iniciada em 1929 nos Estados Unidos revelaria um gigante – Franklin Delano Roosevelt, presidente cujas políticas públicas reergueram o país e que viria, depois, a ser um grande esteio da derrota da barbárie nazista na II Guerra Mundial, ao lado de outro colosso da história do século XX, o primeiro-ministro britânico Winston Churchill.

A II Guerra produziu toda uma geração de grandes homens, do mesmo modo que o pós-guerra seria pródigo em líderes à altura de seu tempo. Os democratas-cristãos Alcide De Gasperi e Konrad Adenauer tornaram-se os artífices da reconstrução de seus países destroçados, a Itália e a Alemanha. O general Charles de Gaulle, herói da França por sua resistência incansável à capitulação francesa ante a Alemanha nazista, durante o conflito, já como presidente viria a salvá-la do câncer de oito anos de luta contra a independência da Argélia, por fim concedida em 1962. E por aí vai.

Momentos cruciais que revelam grandes líderes não são, por certo, exclusividade de nenhum país ou continente. Para continuar apenas com exemplos do campo democrático, o sul-africano Nelson Mandela emergiu em 1990 de 28 anos de prisão – boa parte deles em regime duríssimo, que incluiu a solitária – para ser o fator-chave do final do regime racista do apartheid. O negro Mandela teve grandeza para estender a mão aos algozes, aliar-se ao então presidente Frederik De Klerk, líder da minoria branca, e promover a conciliação nacional que o levaria ao Prêmio Nobel da Paz de 1993 e a uma vitória consagradora nas eleições presidenciais de 1994, tendo De Klerk (igualmente agraciado com o Nobel) como vice. Governou por cinco anos, não quis candidatar-se à reeleição e hoje, retirado da vida pública mas ainda influente aos 87 anos, é uma das grandes reservas morais do mundo.

Aqui na América Latina, há o benfazejo e recente exemplo da transição do Chile para a democracia. O processo começou 1988, com a derrota do ditador Augusto Pinochet no plebiscito que procurava legitimar sua permanência por mais oito anos no poder, onde se instalara pelo golpe cruento com que derrubou, em 1973, o presidente socialista Salvador Allende. A oposição, mesmo atuando dentro de limites ásperos – como, por exemplo, ter que engolir uma Constituição outorgada por Pinochet em 1981 –, esteve à altura do momento histórico: socialistas e democratas-cristãos, adversários históricos, se uniram, juntamente com outros pequenos grupos de centro e centro-esquerda, num pacto eleitoral e político, a Concertación de Partidos por la Democracia, e elegeram presidente por maioria absoluta o ex-senador democrata-cristão Patricio Aylwin, que tomou posse no começo de 1990.

A Concertación não obteve somente êxito eleitoral – uma vez que a Aylwin sucederam o também democrata-cristão Eduardo Frei (filho do ex-presidente do mesmo nome) e, depois, o socialista Ricardo Lagos, que governará até o início do ano que vem. Seus dirigentes atuaram com paciência e habilidade no plano político, de modo a abrandar e por fim eliminar heranças absurdas da ditadura, como a autonomia das Forças Armadas diante do presidente da República e a existência de senadores biônicos vitalícios. Além de tudo, tiveram o bom senso de dar continuidade às vigas mestras da política econômica da ditadura, pela excelente razão pragmática de que ela estava dando certo. Conferiram-lhe tinturas sociais e tocaram o país para a frente, de tal maneira que o Chile é hoje considerado o "Tigre asiático" da América Latina.

No Brasil, o furacão de esperanças que a eleição de Lula despertou foi amainando à medida que o tempo se escoava. Estamos agora no ponto em que até a oposição se esforça para não deixar a crise tragar o presidente. As pesquisas de opinião pública, de resultados ainda surpreendentemente satisfatórios para Lula, não devem iludir ninguém sobre esta questão crucial: o líder carismático e arrebatador que aportou no Planalto mostrou-se, como acertadamente escreveu o filósofo Roberto Mangabeira Unger, "tragicamente aquém da tarefa de que os acidentes da vida e da história o encarregaram". A crise só fez mostrar o quanto Lula se apequenou.

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