Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, julho 29, 2005

Senhor presidente João Mellão Neto

O Estado de S Paulo

 

Bom dia, sr. presidente. Permita que me apresente. Sou um membro da elite, um daqueles que o senhor acredita que querem fazê-lo baixar a cabeça. Pertenço à elite, sim, já que ganho mais de dez salários mínimos, possuo automóvel, tenho curso superior e leio jornais diariamente. No Brasil é o que basta para um cidadão pertencer aos 10% do topo da pirâmide social. O senhor, todos os seus auxiliares e parlamentares de seu partido e de sua base de apoio também são da elite. Mais ainda do que eu, visto que os senhores estão investidos de poder, o que não é o meu caso. Tomei a liberdade de escrever esta carta para lhe dizer que, ao contrário do discurso predominante entre os seus, nem eu nem milhões de brasileiros na minha condição de "elite" temos a menor intenção de derrubá-lo, ou mesmo de desestabilizar o seu governo. Aconteça o que acontecer, não importa que novas revelações apareçam, o nosso sincero desejo, a bem do País, é que o senhor siga governando até o último dia de seu mandato.

A maioria de nós não o apóia, é verdade. E o senhor tem pesquisas em mãos que atestam que, nas assim chamadas classes A e B, a sua popularidade está em baixa. Há uma grave crise se desenrolando. E mesmo entre aqueles que antes o aprovavam o desencanto é muito grande. Também, pudera! O senhor e seu partido passaram anos e anos se arvorando em campeões da ética e da transparência e, agora, todo esse patrimônio moral está desmoronando, mais e mais, a cada novo fato que vem a público. Caixa 2, mensalão, mesadão, financiamentos ilegais, formação de quadrilha, o que mais falta para que desacreditemos de vez do senhor e de seus correligionários?

Se Vossa Excelência me permite a liberdade, eu, pessoalmente, não acredito que o senhor não estivesse a par de tudo isso que agora está aparecendo. Não duvido de sua honestidade pessoal, longe disso! Mas me custa a crer que um presidente da República, com todos os instrumentos de informação de que dispõe, ignorasse totalmente o gigantesco esquema de compra de consciências que os seus mais próximos auxiliares operavam de dentro do próprio palácio onde o senhor trabalha. São muitos milhões de reais envolvidos e quase uma centena de parlamentares aliciados. Todos no Congresso sabiam. Quase todos na imprensa ouviram dizer. Não é crível que logo o senhor - que como chefe do governo era justamente o maior beneficiário dessa compra de votos - fosse o único a não ter conhecimento de nada. Se isso, por acaso, for verdade, o senhor deve imediatamente trocar toda a sua equipe. Não há nela uma só pessoa merecedora de sua confiança...

Não creio, sinceramente, que tenha sido o senhor, pessoalmente, o idealizador de toda essa sordidez. O mais provável é que o seu pecado tenha sido o da omissão. "Política é assim mesmo", deve ter pensado. E, mostra a História, "aqueles que têm nojo da política serão sempre oprimidos por aqueles que não têm..."

O importante, para o senhor, era o seu projeto maior. E, se a causa é nobre, todos os expedientes são legítimos para levá-la a termo. Nesse aspecto eu me atrevo a discordar do senhor. Nas democracias, nos Estados de Direito, há valores permanentes que pairam acima de qualquer ideologia. O século passado foi marcado pelo fato de que os homens se permitiram seduzir pelos dois extremos opostos. Foi necessário que dezenas de milhões de pessoas morressem para que a humanidade descartasse tanto o nazismo quanto o comunismo como atalhos viáveis para a criação da sociedade perfeita. A democracia, sr. presidente, não é um dom ou mesmo uma vocação. É apenas o estuário natural onde desembocam todos os povos que se desencantaram das soluções radicais. E o seu mandamento maior, se não único, é o de que "a justiça só é justa quando alcançada por meios justos".

Nesse aspecto, perdoe-me o atrevimento, tanto o senhor como seus seguidores falharam. Eles, pelo que fizeram; o senhor, pelo que os deixou fazer.

Mas, apesar de tudo, sr. presidente, nós, da "elite", não pretendemos derrubá-lo. Temos consciência de que sua pessoa, sua figura, sua história amalgamam todos os sonhos e anseios de um povo sofrido, um povo que vê no senhor tudo o que ainda lhe resta de um sentimento chamado esperança. Nós não pretendemos desconstruir o seu ídolo, mesmo porque não temos outro ícone para colocar em seu lugar.

Acontece, sr. presidente, que o senhor não nos ajuda a ajudá-lo. Bate forte na elite, que somos todos nós, e condescende com a outra "elite", a dos seus compadres, que é justamente quem o está forçando a baixar a cabeça. Foi essa gente que se promiscuiu com os Marcos Valérios, foram eles que arquitetaram toda essa sujeira, é por causa deles que a sua imagem se conspurcou.

Nós, os alguns milhões de brasileiros estudados e esclarecidos; nós, que representamos a "boa elite" desta Nação, não ansiamos por cargos nem posições. Queremos apenas um governo honesto, ético, honrado e eficiente. O nosso único desejo é de que o senhor estenda ao governo inteiro o mesmo padrão de excelência e racionalidade que já existe no campo isolado da economia.

Solte as amarras, sr. presidente. Desate os nós que ainda o prendem aos seus maus companheiros do passado. O poder não comporta amigos, o senhor bem sabe. Ele é cruel, ingrato, impiedoso, fugaz e terrivelmente solitário. O senhor agora está só, no alto da colina, com os ventos da História lhe assoprando o rosto. Coloque-se à altura do que a sua posição exige.

Lembre-se de De Gaulle. Quando Pompidou, seu sucessor, lhe confessou temer não ser grande o suficiente para governar a França, o marechal o tranqüilizou, dizendo: "Não tema, mon cher, a França o engrandecerá..."

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