Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, julho 26, 2005

Arnaldo Jabor Temos de criar uma nova esquerda

O Globo

O Brasil precisa de uma nova esquerda. A concepção antiga acabou. Está provado o fracasso. Não adianta apenas refazer o PT "moralmente", agora que se esboroou como um biscoito. O PT começou com Lula como um partido original e prático e terminou caindo pelas doenças já catalogadas da esquerda de 1917. O vícios do PT foram causados por velhas teses, principalmente do Zé Dirceu. Ser de esquerda é, até hoje, um elogio, e ser de direita, uma ofensa. Sei que falar nisso já provoca suspeitas, entre dogmáticos, de que um "infiel" possa questionar a semântica política da palavra.

"Esquerda" sugere uma reforma radical na sociedade de classes para salvar os pobres, traz à mente a idéia de que é preciso "raspar" a vida social e começar tudo do zero. Para melhorar a vida da população, é preciso uma revisão no repertório conceitual.

A resistência da palavra esquerda é hercúlea. Mesmo depois de fracassos históricos óbvios, a palavra resiste. O termo é esquivo, encobre erros pavorosos e até justifica massacres. Durante o stalinismo, pensávamos que era um desvio "provisório" na grandeza do projeto soviético e a mesma racionalização rolou na invasão da Hungria em 56 ou de Praga em 68. Na Revolução Cultural da China era chiquérrimo ser maoísta em Paris. Até Godard era "chinês". A palavra esquerda é pétrea, tende a ter um significado fixo — quando deveria ser o contrário. Marx (ahhh... repetir o velho exemplo...) dizia: "Eu não sou marxista." Ele queria dizer que a esquerda deveria ser definida por sua capacidade de mudanças — não apenas estratégicas — mas também conceituais, em situações históricas inéditas.

No Brasil, a visão de esquerda tem uma tonalidade filosófica, holística, como um "grande relato". Intelectuais que não têm saco para análises de campo ou de pesquisas nos botequins da vida real, fazem o país caber em suas teses "a priori". Uma nova esquerda tem de abandonar o discurso universalizante e quase místico, com palavras como "Homem", "totalidade", "sujeito da História", "povo", "fins e meios", "centralismo" e substituí-las por outras como "sobredeterminação", "complexidade", "ambivalência", "parcialidade", "singularidade". Uma nova esquerda tem de incluir "indução" em vez de "dedução", síntese etc... Tem de incluir o inconsciente, a psicanálise. Na avaliação da política, tem de levar em conta o acaso, o acidente, os vícios humanos e abandonar o discurso quixotesco e auto-idealizante. O discurso épico tem de ser substituído por um discurso realista, até pessimista. O pensamento da "esquerda metafísica" tem de dar lugar a uma reflexão mais testada, sentida, mais sociológica.

Além disso, nosso pensamento de esquerda tem de ser local, dentro do vento do tempo. Idéias que podem nos servir não servem para o resto do mundo. Não tem cabimento ler Marx em alemão durante 40 anos e aplicá-lo como um emplastro salvador sobre nossa realidade.

Intelectuais em revoada legitimaram a ascensão do PT ao poder, sem olhar nem uma vez para sua vida real. Votaram no Lula imaginário. Agora, estamos diante do Lula real — que têm eles a dizer? O PT e Lula foram entronizados na eleição como os ungidos de Deus, que vivificariam o Brasil "das elites" com o bafo popular, com a simplicidade sagrada, com a ética enraizada nos sagrados proletários honestos (sic).

Esses intelectuais não imaginaram nem por um segundo que esses "homens do povo" poderiam se comportar como a "porcada magra" que tomou o poder, avançando em cargos, aparelhos, em salários e, para susto até dos céticos, culminando na incrível estrutura de corrupção "revolucionária" que Dirceu inventou.

O PT da velha esquerda não acredita em democracia. Mas, para uma nova esquerda, a democracia tem de ter uma acepção profunda, ser um fim em si mesma. A democracia no Brasil não é um paliativo. Em nossa história oligárquica, clientelista e autoritária só a democracia transparente poderá corroer a velha estrutura colonial. Não adiantam mais clamores épicos contra a injustiça e exortações à luta de classes que, nas brechas de um patrimonialismo de 500 anos, sempre foi limitada a espasmos populares e populistas esmagados pelas classes dominantes. Muito mais importante do que brados contra a miséria seria uma esquerda que estudasse a mentalidade escravista transplantada para um capitalismo precário e seus procedimentos de exclusão. Alias, como estamos até enxergando um pouco agora, por obra de Dirceu e Jefferson. É maravilhosamente irônico. Uma esquerda nova que se preocupasse com o presente possível e se dedicasse com desvelo à administração pública, que buscasse reformar o Judiciário, cama de todos os vícios, que enquadrasse a burocracia, o clientelismo, a corrupção, enxugando o Estado. Mais Weber e menos Lenin. Sergio Buarque de Holanda em vez de Lenin e Gramsci. Entender que o inimigo principal não é o capitalismo e sim o patrimonialismo. A se perpetuar este equívoco, o povo tenderá a procurar respostas mais grossas, dos oportunistas que virão comer os restos. Lula já está falando em "elites" culpadas pela vergonha do governo e buscando ser ouvido pelas classes C e D, que são propriedade do maior perigo que o país corre: o populismo de Garotinho.

Temos de ter coragem de expressar as "idéias impensáveis". Por exemplo: por que a esquerda tem necessariamente de estar ligada à idéia de socialismo? Por quê? Por causa de 1848? Por quê? Enquanto esse finalismo fixo existir, o pensamento fica comprometido, numa ditadura de conceitos tão amada pelos "militantes imaginários", os Hegels de plantão. Se tivermos que arribar necessariamente em um socialismo, seja ele sueco ou norte-coreano, o pensamento já nasce engessado naquela direção.

Uma nova esquerda tem de acabar com a fé e a esperança. Isso dói, eu sei. Mas as duas antigas virtudes não cabem mais no mundo de bosta de hoje. No Brasil, uma esquerda tem de trabalhar no dia-a-dia e não saber para onde vai. Uma nova esquerda tem de acabar com a "esquerda". Esta palavra nos impede de pensar.

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