Entrevista:O Estado inteligente

sábado, julho 30, 2005

FERNANDO GABEIRA Notas de um pianista no Titanic

Folha de S Paulo

  Escrevia umas notas quando alguém parou na minha frente e perguntou: "O que é isso?". Eram apenas lembranças sobre os celulares na CPI. Eles tocam muito e com canções diferentes. Toques marciais, românticos, brigadas de cavalaria, um longo repertório.
As canções nos celulares lembram-me o piano do Titanic. Alguma coisa grande está afundando por aqui e os sobreviventes flutuam entre os destroços com seus minúsculos botes jurídicos. Talvez mais do que partidos, toda uma etapa da política brasileira parece ir ao fundo em forma de cheques, ordens de pagamento, transferências.
Ao pianista não cabe analisar. Apenas imaginar a melodia para as frases que se sucedem, voluptuosamente. Não seria melhor fazer alguma coisa além de escrever notas? O problema é que as frases me fascinam. E desconcentram.
É assim também com as gravações telefônicas. Numa delas, um publicitário dizia: "Estive naquela cidade, falei com o japonês e o caipira da Casa Civil". Foi o bastante para que toda a minha experiência em Brasília ganhasse um sentido; se, um dia, for escrever algo, está aí o título: "Estive naquela cidade".
- O problema é a língua das pessoas: ferem mais do que bala.
Esta foi extraída de uma conversa telefônica entre o contador e seu irmão policial, que queimou os papéis de Marcos Valério. De fato, os trabalhos na CPI são às vezes um tiroteio de línguas ferinas.
Hesito muito em intervir. Em primeiro lugar, há a questão do adversário. Quando era aliado do PT, discutia política com seus dirigentes: quando entrei no PT, bem ou mal, discutia também; na oposição, discutia política. Agora que os dirigentes que aparecem estão refugiados atrás de uma teoria jurídica, não há o que discutir.
Quando o secretário-geral do maior partido de esquerda do continente afirma que não vai falar publicamente sobre seus bens, a lógica que rege a discussão política vai para o espaço. Para leitores como eu o texto é este: esqueçam-me, pois estou enviando a mensagem de que não há mais política, salve-se quem puder, ou tiver um bom advogado.
Esta fuga do espaço político para o jurídico, este suicídio intergaláctico, desconcerta-me e coloca também a questão humanitária. No passado, fui ferido, e entre os policiais que me cercaram havia alguns agressivos e eram os mais desprezíveis. Afinal estava ferido e sangrando, que sentido tinha aquela agressividade?
Escondidos atrás dos advogados, os que aparecem para depor estão feridos moralmente. Assim como é insustentável uma postura agressiva, ser magnânimo, nessas circunstâncias, também é repulsivo, por supor algum tipo de superioridade.
Um tom objetivo e profissional precisa ser alcançado, sobretudo por aqueles que se dedicam o tempo inteiro à CPI. São autoridades democráticas brasileiras investigando o desvio de dinheiro público. Num país como a China da revolução cultural, os culpados exibiam cartazes pelas ruas e eram expostos à execração popular.
Em Cuba, eram as reuniões de repulsa. São descritas no livro de Raúl Rivero, "Provas de Contato", que, finalmente, aparece no Brasil. Inspiradas pelos chineses, eram organizadas pelo Ministério do Interior. Um casal de cientistas que tinha o hábito de jogar cartas até meia-noite foi condenado a ostentar um cartaz: "Somos porcos burgueses".
As CPIs são vistas por milhões de pessoas. Deveriam organizar os fatos de tal maneira que as pessoas compreendessem o que se passou. Contradições deveriam esboroar fragorosamente contra os dados. Um diligente trabalho de investigação deveria mostrar um quadro do que se alcançou e do que se pretende. Isto poderia estar sendo mostrado ao vivo.
Apesar da atração pelo latim e pelos documentos escritos, a CPI poderia ter um grupo de pessoas trabalhando em rede, organizando os dados, cruzando-os e produzindo as perguntas essenciais para uma nova etapa de investigações.
Existe uma grande tentação de punir os depoentes no ar. Considerando que há milhões de pessoas assistindo, equivale um pouco às reuniões de repulsa cubanas, modelo de que deveríamos nos afastar, os que acham que os fins não justificam os meios. Lições de moral, envolvimento de filhos, mães idosas, ainda que seja com o intuito de comover, acabam submetendo a pessoa a algo que não está previsto em nossa lei.
No único momento em que falei na CPI, para enfatizar este ponto, percebi, pelos e-mails, que alguns não gostaram. É natural. Os espectadores em casa pensam o que querem, falam o que querem entre si. Autoridades democráticas interrogando suspeitos em rede de televisão obedecem a um ritual específico.
Há muitas paixões se desenrolando ao som dos celulares. E, quando há muita paixão, sempre se atira em quem lembra os direitos humanos. No fundo, não faz muita diferença, pois é grande a tentação de atirar no pianista.
Quando a mulher de Marcos Valério disse que o sonho dela era a avalanche passando com o julgamento nos tribunais, pensei: isso faz parte do meu programa mínimo. Mas não é tudo. Quando a avalanche passar, o Brasil estará mais maduro, teremos ajustado as contas com uma nefasta visão da história. Sem essa de esperança que venceu o medo. Apenas mais maduro, como a menina do filme, que, depois de todas as suas peripécias, pergunta: "Pareço uma mulher com um passado?".

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