Os rapazes, jovens trabalhadores, foram trucidados pelos delinqüentes do Morro da Mineira, eficientes cumpridores do mandato que lhes outorgaram o tenente, os sargentos e os soldados, feridos em sua sensível "honradez" militar.
Se o desacato consiste na afronta à autoridade e à dignidade do servidor público, o tenente, os sargentos e os soldados afrontaram a lei e a ordem do País, às quais devem, por preceito constitucional, a mais absoluta obediência, conspurcando a farda que vestem.
Se houve desacato, portanto, foi ao País, por parte do oficial e de seus subordinados, arquitetos de uma ação vingativa, ao se arrogarem a condição de autoridade, quando eram apenas uns covardes ao fazerem executar inocentes pela mão de delinqüentes, dos quais se transformaram em mandantes.
Em 1981 escrevi um artigo sobre o episódio do Riocentro, no qual um oficial e um sargento do Exército acabaram vítimas de si mesmos ao estourar no carro em que estavam a bomba que fariam explodir em meio a 20 mil espectadores do show do Dia do Trabalho, nos estertores da ditadura. O sargento morreu, o capitão feriu-se. Naquele momento, lembrei ato praticado por tenente do Exército e seus subordinados no denominado caso Satélite, denunciado com indignação por Ruy Barbosa no Senado Federal em 1914. Terminava o artigo indagando: "Até quando Ruy terá razão?"
Passados 27 anos, só posso dizer que Ruy ainda tem razão. O que Ruy, o patrono da cidadania, dizia?
Em 25 de dezembro de 1910, zarpava do Rio de Janeiro o navio Satélite com centenas de presos em seus porões, retirados das solitárias do presídio da Ilha das Cobras, em direção a Manaus, para cumprirem desterro no Acre. Eram marinheiros detidos durante o estado de sítio, que já se esgotara. Oito ex-marinheiros, não prisioneiros, foram convidados a ir a Manaus. A escolta no navio era composta de dois tenentes e 50 praças do Exército. O navio aportou na Bahia e depois no Recife.
Em 31 de dezembro, ao largo da costa de Pernambuco, desconfiaram o tenente e os soldados do Exército que os oito ex-marinheiros, então passageiros, viriam a ajudar os presos a se sublevarem. Foram detidos, postos a ferros e depois sumariamente fuzilados, sendo os corpos jogados ao mar. O Exército, meses depois, quando se denunciou a barbárie, justificou o morticínio com a escusa de que a tropa, desacostumada com o mar, estava exausta com a vigília e o enjôo, agindo em legítima defesa diante da iminente sublevação.
Em face desse fuzilamento sumário, dizia Ruy: "Que somos, que ficamos valendo todos nós neste país, de ora em diante?" Temia Ruy que a semente então espalhada nesses atos se propagasse a brotar sua florescência sinistra e que houvesse vítimas amanhã de atentados semelhantes.
Sentia-se cheio de vergonha e desanimado diante dos dolorosos e ferozes acontecimentos e lamentava a "miséria da linguagem humana, esgotada, gasta, já sem serventia para servir de látego sobre a cabeça de criminosos desta categoria e desta monstruosidade".
Ruy concluía que as leis mentem. Digo hoje, parafraseando o grande tribuno, que a Constituição mente, pois proíbe a pena de morte, assegura o devido processo legal, protege a liberdade e a vida, mas todos esses direitos e garantias se arruínam a tal ponto que um tenente e sargentos do Exército, tal como no navio Satélite, clandestinamente mandam matar inocentes de forma sumária.
Pior o caso do Morro Providência do que o do navio Satélite. Em 1910, os militares fuzilaram covardemente, mas com as próprias mãos. Hoje, covardemente, deixaram o serviço sujo aos delinqüentes que deveriam reprimir, dos quais se tornaram devedores e sócios. Em vez de velarem pela ordem e pela paz social, puseram o Exército contra a população civil do País, que juraram defender.
Se já constitui um mal o violador da lei assumir a posição de protetor da lei - o que tem sucedido muitas vezes -, mais inseguro, no entanto, é constatar que o mantenedor da ordem se transforma em infrator para atingir a vida e a liberdade dos membros da comunidade. Instala-se o medo definitivo, a descrença absoluta.
Se o tenente, em 1910, comandante da tropa no navio Satélite foi depois condecorado pelos bons serviços prestados, se o capitão do Riocentro veio a ser logo depois promovido a major, espera-se, com a presença do ministro da Defesa ao apresentar desculpas às mães dos jovens assassinados, e com a prisão preventiva decretada pela 2ª Auditoria Militar do Rio de Janeiro, que o espírito de corpo, que é grande, não prevaleça, como o único caminho possível para, em longa duração, se restabelecer a confiança nas autoridades.
Não há dia em que não se veja nos jornais notícia de violência praticada por agentes da lei. Policiais estão mancomunados com assaltantes, quando não dirigem a ação criminosa. Policiais ligam-se a grupos de extermínio e a milícias. Policiais fazem, nas esquinas das grandes cidades, transitar em julgado a condenação à morte de indigitados delinqüentes, sempre com a escusa de agir no cumprimento do dever legal.
O temor de Ruy Barbosa, infelizmente, tinha procedência, pois efetivamente brotou a florescência sinistra. Até quando Ruy terá razão?
Miguel Reale Júnior, advogado, professor-titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça