No começo de janeiro, Hugo Chávez recomendou ao resto do mundo que conferisse às Farc o status de "grupo beligerante". Onde parecia haver um bando de ex-guerrilheiros convertidos ao narcoterrorismo nos anos 80, ensinou o presidente venezuelano, havia um exército libertador que desde 1964 arrisca a vida pelo povo sofrido da Colômbia. E onde parecia haver um governante democraticamente eleito havia o tirano Álvaro Uribe, moleque de recados de George Bush, lacaio do imperialismo ianque.
No começo de março, inconformado com o ataque militar à estalagem das Farc no Equador que abrigava o amigo Raúl Reyes, Chávez ameaçou ir à guerra. "Uribe é mafioso, dirigente do narcotráfico e de quadrilhas paramilitares", metralhou. Que os companheiros das Farc tivessem só um pouco de paciência: logo se vingaria do massacre que apressou a partida do amigo (e "grande guerreiro") Raúl Reyes – o único guerrilheiro da história a morrer de pijama.
No começo de junho, o chefe da seita bolivariana surpreendeu os devotos com a abrupta alteração do Evangelho. "Libertem os reféns, sem pedir nada em troca", ordenou às Farc. "A guerra de guerrilha passou, a luta armada está fora de lugar". Se tivessem ouvido com mais atenção a palavra do senhor, os fiéis não ficariam tão atarantados com a reviravolta precipitada pelo resgate de Ingrid Betancourt. Um mês depois de ameaçar com a excomunhão os devotos enfurnados na selva, o inquieto pastor resolveu absolver Uribe de todos os pecados.
Na tarde do dia 2, tão logo soube da notícia, Chávez telefonou para o presidente colombiano, felicitou-o efusivamente pela libertação de Ingrid e convidou-o a visitar a Venezuela o quanto antes. "Uribe será recebido como um irmão", avisou no dia seguinte o anfitrião, já sobraçando acordos bilaterais à espera da assinatura. E os incontáveis insultos e ofensas? "Já nos dissemos coisas muito duras", admitiu. "Mas essas coisas acontecem também entre irmãos". Que Lula, que nada, descobriu-se: metamorfose ambulante é isso aí.
O giro de 180 graus na cabeça do guia foi o baque que faltava para que o rebanho – atônito com a cinematográfica performance do comando do Exército, confuso por ver aqueles guerreiros tão espertos reduzidos a otários da selva, enlutado pelo renascimento da mulher condenada ao inferno dos mortos-vivos – perdesse o rumo de vez. Os bolivarianos praticantes resolveram que, apesar da capitulação do chefe, a guerra fria continua.
A munição com que sonhava a tropa sem general chegou dois dias depois da reaparição em Bogotá de Ingrid e outros 14 prisioneiros libertados, além de dois comandantes das Farc capturados pelo Exército. Entrincheirado no estúdio da Rádio Suisse Romande em Berna, o repórter Frederich Blassel garantiu que o governo colombiano pagara US$ 25 milhões pelo resgate. O trote aplicado em Gerardo Aguilar, o "César", as equimoses em sua face, o helicóptero com o logotipo de uma organização humanitária, o rosto de Guevara estampado nas camisetas sob jalecos, o espanto dos prisioneiros ao saberem que voavam para a liberdade – tudo não passara de encenação.
Como a Suíça nem tem Exército, os nativos do simpático país interessados na carreira militar devem disputar uma vaga na Guarda Vaticana, que vem sobrevivendo com muita galhardia aos disparos dos flashes dos turistas. O desinteresse dos suíços pela América do Sul é tão antigo quanto o primeiro relógio cuco produzido ao pé dos Alpes. Mas a legião bolivariana decidiu que Blassel descobrira a verdade, graças a uma fonte anônima, "fiel e provada em muitas ocasiões". Tremenda armação. Claro que César, chefe da carceragem, havia traído as Farc e comercializado os reféns. Claro que Ingrid só topou rever a família depois de passar por um revigorante regime de engorda.
Só falta explicar por que César topou vender por um preço abaixo da tabela do governo não só os reféns, mas a própria extradição para os Estados Unidos – e a inevitável prisão perpétua.
Entrevista:O Estado inteligente
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