O único treinamento das Farc do qual participei como repórter, filmando uma série para o Jornal Nacional, em 2001, era, claro, um show para a TV. Como outros jornalistas, pude estar (autorizado pelo comando das Farc) na zona desmilitarizada que o então governo colombiano havia estabelecido numa região central do país. Era uma espécie de parque temático da guerrilha, com acampamento modelo, discursos políticos, escola para camponeses, etc – bem distante da realidade nas frentes de combate, conforme pude constatar na mesma viagem.
Mesmo num show para a câmera de TV (guerrilheiros avançando e recuando em colunas, táticas de infiltração e cerco, exercícios de ordem unida) dava para se notar que o principal problema de combate das Farc, como de qualquer unidade militar, era manter sua gente apta… a combater. O maior número de baixas da organização, explicava-me o comandante Joaquin Gómez, que agora ocupa o lugar de Raúl Reyes como segundo do grupo narco-guerrilheiro, devia-se a doenças no pé.
De fato, os pés de um combatente naquela região da selva nunca secam, principalmente se ele usar calçados de couro. Em uma semana uma picada de inseto transforma-se numa bicheira. Em quinze dias o combatente não tem mais condições de andar. Para grupos de 12 guerrilheiros que precisam estar em constante movimentação, é um problema fundamental (depressa as Farc descobriram que é muito melhor mover-se com botas de borracha de cano alto, uma medida copiada até pelas tropas de elite "ranger" do Exército colombiano).
Outro problema grave para os guerrilheiros, facilmente constatável naquele show de treinamento: comunicações. Os rádios das Farc eram aparelhos comuns, de alcance limitado por montanhas e que precisavam de baterias recarregadas todo dia. E facilmente rastreáveis por qualquer um que tenha equipamento similar (um "walkie talkie" que se compra em qualquer loja). E que distância percorre um guerrilheiro com todo equipamento (mantimentos para 3 dias, arma e munição), perguntei ao comandante Gómez. "Depende", disse ele, "tipicamente uns 20 quilômetros por noite".
Um garimpeiro na Amazônia consegue "varar" (como eles dizem para andar a pé) uns 200 quilômetros de floresta em menos de uma semana, e eles são exímios andarilhos. Provavelmente o comandante Gómez exagerava a capacidade de deslocamento de seus comandados. Fora do parque temático das Farc no centro do país (ele foi abolido em 2002) pude ver os guerrilheiros no departamento de Putumayo, próximo a Puerto Asis, a região onde se deu o mortífero ataque da Colômbia no último fim de semana.
Putumayo é de importância estratégica para as Farc, pois lá está grande parte do cultivo de coca no país. Não é à toa que o Exército colombiano, recuperado e treinado com assistência militar direta dos Estados Unidos, concentrou suas operações naquele lugar. E está tendo enorme sucesso no combate aos guerrilheiros. Que hoje só podem movimentar-se, comer, armar-se, controlar ainda a produção de coca, se tiverem um esconderijo seguro – naquele caso, o Equador.
As mortes do "Negro" Acácio, em setembro, próximo à fronteira com a Venezuela, e de Raúl Reyes, no último fim de semana, na fronteira com o Equador, são o retrato de um duplo golpe que provavelmente diminuirá ainda mais a capacidade de combate da guerrilha. Negro Acácio (o comparsa de Fernandinho Beira-Mar na troca de mulheres e armas, trazidas do Brasil, por cocaína, produzida na Colômbia) era um dos principais gerentes do tráfico de drogas gerado pelas Farc, enquanto Reyes era o responsável pelo tráfego de influência internacional.
Parece-me claro que a estratégia de sobrevivência da narco-guerrilha, hoje, é meramente política. Ela está sendo sufocada por uma ofensiva militar, pela falta de apoio popular e, principalmente, pelos enormes problemas de logística em regiões de selva tropical. Para as Farc, continuar existindo depende do controle do narcotráfico, mas, em medida muito maior, de aliados políticos que facilitem descanso, rearmamento, zonas de segurança e repercussão. Por si só, estariam destruídas.
O governo colombiano está vencendo a guerra e o resultado da resolução da OEA reflete a percepção de vários países latino-americanos de que dar uma sobrevida às Farc só interessa à mal traçada estratégia do coronel Hugo Chávez. O fato consumado pela Colômbia é um duplo golpe militar na cabeça do grupo narco-guerrilheiro. As autoridades colombianas não têm pressa em trocar reféns provavelmente pela constatação de que o principal é não dar respiro as Farc.
É disso que se trata a crise, no momento. Chávez e seus seguidores não querem que as Farc sejam derrotadas. Estão prolongando um conflito armado por interesses políticos e ideológicos. Uma política externa brasileira que estivesse voltada de fato para nossos interesses principais de segurança deveria concentrar-se na solução desse conflito militar – o da narco-guerrilha contra um governo legítimo, legal e democrático.
Ser "neutro" diante das Farc é fazer o jogo de Chávez.