Entrevista:O Estado inteligente

domingo, março 16, 2008

FERREIRA GULLAR

Surrealismo mágico


O encontro dos líderes latinos foi parte do espetáculo que iniciou com o ataque às Farc

UMA TRAGICOMÉDIA, uma comédia, uma farsa, como definiremos o que tem ocorrido na América Latina, nestas últimas semanas? Poucas vezes o mundo teve oportunidade de assistir a cenas tão inusitadas como as da 20ª Reunião do Grupo do Rio, realizada em Santo Domingo, e poderia ter sido em Macondo.
Aquele encontro dos chefes de Estado latino-americanos foi apenas parte do espetáculo que começou com o ataque da aviação colombiana a um acampamento das Farc em território do Equador, de que resultou a morte de Raúl Reyes, o segundo homem do comando da guerrilha.
No primeiro momento, pareceu que se ia deflagrar uma guerra entre a Colômbia, o Equador e a Venezuela. Enquanto o presidente equatoriano Rafael Correa denunciava Álvaro Uribe por atentar contra a soberania de seu país, o venezuelano Hugo Chávez enviava tanques e tropas para a fronteira com a Colômbia. Fidel, lá de Cuba, ouviu as trombetas da guerra soarem nos céus latino-americanos. Imediatamente, os governos de Brasil, Chile e Argentina puseram água na fervura, e convocou-se uma reunião da OEA (Organização dos Estados Americanos).
Não obstante isso, os presidentes Rafael Correa e Hugo Chávez não pareciam dispostos ao entendimento. Correa tomou a iniciativa de visitar os países vizinhos com o propósito de isolar a Colômbia. Enquanto esses lances se desenrolavam, muita gente se perguntava por que a Venezuela deslocara tropas para a fronteira com a Colômbia se, afora a declarada diferença político-ideológica entre Uribe e Chávez, o incidente que deflagrara a crise não envolvia a Venezuela. Estranhamente, mais que Correa, o presidente venezuelano parecia disposto a ir às vias de fato. Mas a pretexto de que, se suas fronteiras não haviam sido violadas? Queria era pôr mais lenha na fogueira? Outra coisa não pretendia Daniel Ortega, presidente da Nicarágua, quando, intempestivamente, rompeu relações com a Colômbia.
O mundo inteiro deve ter assistido, perplexo, a tantas e insensatas bravatas, muito embora o governo colombiano, forçado pelas circunstâncias, tenha reconhecido que ferira a soberania equatoriana e pedira desculpas formais por isso. Mas Rafael Correa, entre insultos e berros, exigia a cabeça do culpado.
E Lula, que partido tomara? O partido de Lula, claro. Ou seja, tratava de se equilibrar entre os contendores, sem se queimar com nenhum deles. Condenou, com razão, a violação do território do Equador pela Colômbia, mas aconselhou Correa a aceitar as desculpas de Uribe. Se telefonou para Hugo Chávez, recomendando moderação, não se sabe, mas não condenou publicamente seus rompantes belicistas nem tampouco estranhou por que as Farc se abrigavam em território do Equador, sem serem molestadas pelos militares daquele país. De qualquer modo, agiu corretamente ao aconselhar os contendores a acertar suas contas na mesa de discussões. Mas lá não foi, claro. Mandou em seu lugar o chanceler Celso Amorim à reunião da OEA que decidiu por condenar a atitude da Colômbia sem, no entanto, impor-lhe punições. Correa e Chávez, isolados em seus propósitos, tendo que engolir a decisão majoritária, prepararam-se para ir à forra na reunião do Grupo do Rio, na semana seguinte.
A situação de Uribe, no contexto latino-americano, é sempre difícil, porque ele conta com o apoio político e militar dos Estados Unidos. Numa visão simplista, Chávez, Correa, Ortega e Lula encarnariam a luta contra a dominação americana, enquanto Uribe, pelo contrário, se aliaria a ela. Talvez por sentir-se isolado, não compareceu ao almoço que reuniu os representantes de todos os países participantes da reunião nem quis aparecer na foto que os reuniu. Mas, iniciadas as discussões, ele, inesperadamente, partiu para a ofensiva, surpreendendo a todos e especialmente a Correa e Chávez; apresentou documentos, que teriam sido apreendidos no acampamento das Farc, que fora bombardeado, e que provavam entendimentos e ajudas dos dois à organização guerrilheira colombiana. Alegando ter provas de que Chávez dera US$ 300 milhões às Farc, ameaçou denunciá-lo ao Tribunal Penal Internacional. Chávez e Correa negaram a autenticidade dos documentos, mas Uribe insistiu nas denúncias.
E quando parecia que a vaca -ou melhor, a paz- ia para o brejo, Chávez começou a cantar um bolero e a dizer-se um pacifista. De furiosos, ele e Correa tornaram-se cordatos e terminaram apertando a mão de Uribe. Não é de estranhar? Foi aí que o pano de cena se fechou diante de uma platéia perplexa. Aguardemos o próximo ato.

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