Constitucionalistas da metade dos anos 1960 discutiam se a cratologia
poderia ser entendida como ciência política, uma vez que todo poder
pode ser conhecido e explicado só no que concerne aos seus
resultados, ao que faz, mas não podemos definir sua substância.
Aparentemente, é uma questão de lana caprina, já que a ciência
política, de modo abundante, nos ensina o processo político e os
controles, horizontais e verticais, e os tipos de governo. Mas o
problema surge por meio de alternativas e mesmo de deformações dos
tipos de governo, especialmente a respeito da democracia. Todos
sabemos, por exemplo, onde nasceu a democracia direta e como se
tornou imperativo mudar a sua essência. De como as assembléias gregas
tomavam a decisão e seu controle, só possível numa ordem social
relativamente simples e na praça pública ou em pequenos territórios.
Duraram dois séculos numa economia primária sustentada pela
escravidão e deixaram evidente a natureza dos políticos, o que ainda
hoje nos ajuda a classificá-los, sem menosprezar a contribuição
inestimável dos gregos à cultura. Mas em política o saldo que nos
deixam é em nada diverso quanto à ética e à moral. Aristides, símbolo
da honestidade política, foi desterrado. Temístocles, que venceu as
tropas persas impedindo que a Grécia a eles se submetessem, teve mais
tarde de pedir asilo político ao seu mais encarniçado inimigo.
Ignoraram as advertências de Demóstenes sobre os colaboradores com
seus adversários e se deixaram seduzir por Cleon, o exemplo histórico
do demagogo.
Na história contemporânea, vimos o século 20 - que o historiador
britânico Hobsbawm batizou de século breve - transformar-se num
período dos mais sangrentos baseado nas ideologias. Como dizia
Raymond Aron, os ditadores usam dizer que estão praticando a
democracia. Adjetivam-na, para tentar iludir o povo. É precisamente o
que se passa no Caribe, como exemplo a seguir.
O presidente Hugo Chávez, em nome da recuperação da Venezuela, que
ele acusava de ser dirigida por corruptos, tentou uma sublevação pela
qual pagou alguns anos na prisão. Populista que se descobriu de
esquerda, ganhou eleições. Sustenta ser democrata como poucos, mas
exerce indiscutivelmente o neopresidencialismo, que Lowenstein
definiu com poucas e luminosas palavras: "É o regime em que o
detentor do poder Executivo não prescinde do Legislativo e do
Judiciário, desde que submissos a ele." O direito da livre
manifestação do pensamento - um dos esteios da democracia - ele o
eliminou. Fez lei que pune quem ousa criticar as autoridades.
Fechará, a despeito de todos os protestos, até internacionais, a TV
de maior audiência na Venezuela e dentre as mais tradicionais. Impôs
uma Constituição que lhe garante governar sem limite de prazo, só
perdendo o governo se, em plebiscito por ele organizado, a maioria
votar contra ele. Gaiatos dizem que se trata da democratura, um
anagrama de democracia e ditadura. Aí está uma achega à cratologia, o
sistema neopresidencialista que se situa na mistura do Atlântico com
o Caribe.
No Equador, outra contribuição. O presidente imita Chávez, quanto à
convocação de uma Constituinte que certamente caminhará pelo mesmo
rumo, a da democracia dos ditadores. Num momento, reconhece a Justiça
Eleitoral como o órgão máximo do Judiciário e com ela cassa, dos 100
deputados da Câmara, 57 deles de uma vez, com a indisfarçável
intenção de ficar com a maioria, pois os suplentes já estão
disciplinados. Como a Corte Suprema - que em qualquer democracia é o
poder judicial supremo - anula as cassações, o presidente Corrêa
intervém na querela e a dissolve. Mais ainda: porque os cassados se
rebelam e realizam uma sessão paralela, são presos ou fogem para a
Colômbia. Reconheça-se que o povo, cansado da falta de compostura dos
legisladores, aplaude a decisão antidemocrática. Do presidente Evo,
nem falo, porque a Petrobrás - que ele tem lesado - é que devia falar
e não o faz, evitando desagradar a vocação generosa do presidente
Lula. Nasci no Acre, que ele disse havermos comprado por um cavalo.
Espero oportunidade para recompensá-lo, presenteando-o com duas éguas.
Finalmente, cá entre nós, o presidente Arlindo Chinaglia, da Câmara,
se revela do mesmo tipo desses governadores "democráticos": recusa
instalar uma CPI apresentada segundo a norma constitucional. Repete o
que se fez, vergonhosamente, no passado recente, para proteger o
extorsionário Waldomiro Diniz e o Richelieu que o chefiava. Flagrado
e filmado no pedido de propina, está até agora impune. Renitente, não
se dobra à liminar do ministro Celso de Melo, contando obter o apoio
do pleno do Supremo Tribunal de Justiça, que a manteve por
unanimidade. Não lhe restando senão instalar a CPI, organiza-a com o
presidente e o relator pertencentes ambos à base de apoio governamental.
O presidente Geisel, que os do PT só chamavam de ditador, respeitou o
direito da oposição minoritária. Durante seu governo, foi instalada,
a requerimento do MDB, a CPI do Acordo Nuclear Brasil-Alemanha, que
era a menina dos seus olhos e já fora aprovado pelas duas Casas do
Legislativo. Presidiu-a o senador Itamar Franco, do MDB, e o relator
foi um senador do PDS, norma adotada para todas as CPIs.
O presidente Chinaglia imitou, enquanto pôde, o presidente
equatoriano. Acaba de descumprir uma decisão do Tribunal Superior
Eleitoral, a quem cabe, sem dúvida, confirmar ou não a diplomação dos
eleitos. Uma vez diplomados, muitos bandearam-se. Venderam o que não
tinham, porque nenhum deles se elegera sem os votos de sobra dos
partidos. E os da oposição? Aderiram todos, como fizeram os
"mensaleiros" da legislatura anterior, ao governo. Inventa-se a tese
de que a reeleição vale pela absolvição. Deles e dos "sanguessugas".
*Jarbas Passarinho, ex-presidente da Fundação Milton Campos, foi
senador pelo Estado do Pará e ministro de Estado