Como educar na TV
O homem que dirige Vila Sésamo fala da volta do
programa ao Brasil e diz que a tecnologia é um
aliado no esforço de ensinar as crianças
Tania Menai, de Nova York
Divulgação
"A televisão e outras mídias são professores naturais das crianças. A questão é o que ensinam"
O americano Gary E. Knell, 53 anos, é pai de quatro filhos. Mas também se preocupa, e muito, com a educação da prole alheia. Ele dirige a Sesame Workshop, organização sem fins lucrativos cujas atividades educacionais vão da distribuição de livros até a série de televisão Sesame Street, dirigida a crianças em idade pré-escolar. A primeira versão estrangeira do programa, transmitido nos Estados Unidos há 38 anos, foi o brasileiro Vila Sésamo. No ar entre 1972 e 1977, encantou uma geração de brasileirinhos com Garibaldo, o pássaro gigante, e o elefante Funga-Funga. Vila Sésamo, presente hoje em 120 países, voltará ao Brasil em outubro, transmitido pela TV Cultura e canais afiliados. Com uma hora diária, o programa terá uma nova personagem, chamada Bebel, e filmes sobre a diversidade cultural brasileira. Diplomado em ciências políticas e jornalismo, Knell viaja o mundo para promover programas educacionais. Ele concedeu esta entrevista a VEJA no coloridíssimo escritório Sesame Workshop, em Nova York.
Veja – Será que os brasileiros ainda se lembram de Vila Sésamo?
Knell – Da última vez que estive no Rio de Janeiro, um homem me abordou e se apresentou como Garibaldo. Seus pais escolheram o nome por causa do personagem. Isso dá idéia do impacto que tivemos naquele tempo. Estamos animados em voltar com a nova série que vai educar e, principalmente, entreter os brasileirinhos. Somos a rua mais comprida do mundo. Sesame Street nasceu em Nova York em 1969 como parte de uma campanha chamada Guerra contra a Pobreza. Era uma forma de usar a televisão para elevar o nível de educação nacional. Tratava-se da utilização dessa mídia não apenas para que os espectadores decorassem jingles comerciais, mas como auxílio às atividades escolares. Crianças passaram a memorizar letras, números, formas e normas de saúde. Desse modo, as crianças de baixa renda poderiam melhorar seu desempenho escolar.
Veja – A televisão também poderia ser útil na educação dos brasileiros?
Knell – As crianças não aprendem apenas quando estão na escola. Elas aprendem desde a hora em que acordam até o momento em que fecham os olhos para dormir. A televisão e outras formas de mídia são professores naturais pelos quais elas têm atração. A questão é saber o que ensinam. Se conseguirmos usar o poder da televisão e de outras mídias para promover ensinamentos sobre escrita, números, ambiente e diversidade, temas típicos de Vila Sésamo, poderemos utilizar esse "tempo livre" em frente à TV para fomentar o amor ao aprendizado. Isso ajudará não apenas no desempenho escolar, mas também no futuro da criança.
Veja – Vila Sésamo pretende abordar assuntos como violência, uma realidade na vida de muitas crianças brasileiras?
Knell – Vivemos em Nova York e não podemos decidir sobre o foco do currículo em nenhum dos países em que atuamos. Não fingimos ser especialistas em Índia, Japão ou Brasil. É papel dos brasileiros decidir qual o currículo mais apropriado. Sempre digo que nós desenhamos a cozinha e os países decidem o que cozinhar. No caso do Brasil, a primeira temporada vai tratar de aprendizado de letras e de números, além de abordar a diversidade racial do país e assuntos sobre ambiente. A escolha foi da equipe brasileira.
Veja – O que o senhor conhece sobre a programação infantil da TV brasileira?
Knell – A televisão comercial brasileira é um dos maiores produtos de exportação do país. Mas falta colocar a cultura brasileira, que é maravilhosa, num programa educacional infantil. Queremos fazer um trabalho ainda melhor do que fizemos no passado. Hoje dispomos de canais via satélite, programas educacionais e desenhos animados. Sempre lembro à minha equipe que o chefe não sou eu. Quem manda é a menina de 4 anos, sentada no sofá em São Paulo, segurando um controle remoto, que, se ficar entediada, mudará de canal. Se não soubermos oferecer a essa criança algo interessante, não cumpriremos a nossa missão. Note que, por assistirem muito a televisão, as crianças têm um paladar refinado.
Veja – O Sesame Street atualmente cria personagens bastante polêmicos, como a criança sul-africana com aids. Como o telespectador reage a essas novidades?
Knell – No Takalani Sesame, nossa versão sul-africana, usamos sete idiomas e tratamos a questão do HIV e da aids, já que uma em cada nove crianças tem o vírus e sofre brutalmente de preconceitos e estigmas, até mesmo na escola. A personagem Kami representa uma menina com HIV que é assintomática, feliz, mas órfã de mãe, vítima da aids. Dessa forma, você ensina que as crianças podem abraçar seus amiguinhos e brincar com eles sem contrair a doença. Essa é uma ferramenta espetacular para educar um grande número de pessoas. Kami é um grande sucesso em seu país e tornou-se símbolo do Unicef para crianças com aids.
Veja – A versão israelense já teve personagens árabes e judeus vivendo na mesma rua. Hoje, devido ao agravamento do conflito, cada povo tem sua versão. Como lidar com situações desse tipo?
Knell – Acabo de chegar de Israel e dos territórios palestinos. A divisão existente por lá é difícil de vencer. Mas esperamos ajudar a formar uma geração de crianças que não fique atolada nos preconceitos de seus pais. Estamos levando o mesmo tipo de trabalho para os Bálcãs. Também na Irlanda do Norte firmamos uma parceria com a BBC para estreitar o abismo entre católicos e protestantes.
Veja – Quais os maiores desafios em áreas de conflito?
Knell – Os psicólogos recomendam três providências para lidar com conflitos. A primeira é a auto-estima. Ou seja, não há como se sentir bem em relação ao outro se você não se sente bem em relação a si. A segunda é a empatia: colocar-se no lugar do outro. A terceira é a compreensão do impacto que suas ações têm nos demais. No caso de israelenses e palestinos, a situação se reverteu depois do início da atual intifada. Andamos para trás. Tornou-se fisicamente impossível reunir os produtores para trabalhar numa rua em comum. Então criamos programas paralelos para Israel, Palestina e também para a Jordânia. Todos abordam os temas tolerância e respeito.
Veja – Como Vila Sésamo aborda a guerra no Iraque?
Knell – Há 700 000 crianças em idade pré-escolar que são filhos de militares enviados para a guerra. Muitos desses homens e mulheres estão prestando serviço militar já na segunda ou terceira temporada, e cada uma tem duração de seis meses a um ano. Essa situação é problemática para as famílias que têm de lidar com as idas e vindas, ausências, principalmente quando uma das crianças assume a posição paternal enquanto o pai está fora. Então criamos um kit chamado "Talk, Listen, Connect" (Fale, Escute, Conecte-se), para ajudar os pais a lidar com as crianças. Fizemos 400 000 kits, além das versões on-line e para a televisão com o ator Cuba Gooding Jr. A idéia é que, quando se envia um pai para o campo de batalha, é como se a família fosse junto. Não importa se você é contra ou a favor dessa guerra. Nosso foco é nas crianças que não tiveram escolha e têm de lidar com essa realidade.
Veja – O economista canadense Don Tapscott diz que, "pela primeira vez na história, as crianças estão mais confortáveis, alfabetizadas e têm mais conhecimento que seus pais". O senhor concorda?
Knell – Concordo plenamente, sobretudo porque tenho quatro filhos. Certa vez, fui entrevistado pela televisão chinesa e o repórter disse que as crianças de lá estão na internet o tempo todo, jogam videogames, assistem a televisão mais do que deveriam e não fazem o dever de casa. Respondi: "Puxa, parece que você esteve na minha casa". Trata-se de um desafio universal. As crianças de hoje nunca saberão como era o mundo sem internet, telefones celulares e mídia digital. A desvantagem da tecnologia é que nela tudo é tão rápido que nada é durável. O desafio é achar uma forma na qual o aprendizado seja duradouro em áreas como história, música, leitura, escrita ou cultura. Temos de criar cidadãos do século XXI a partir da tecnologia do século XXI.
Veja – Alguns estudos demonstram que o excesso de tecnologia pode ser prejudicial às crianças, pois reduz a capacidade de concentração e, por conseqüência, de aprendizado. O senhor concorda?
Knell – Minha observação como pai é a de que é impossível alguém assistir a um jogo do Ronaldinho na televisão, escutar Gilberto Gil, escrever para os amigos da Venezuela e fazer o dever de casa ao mesmo tempo. Por outro lado, faltam pesquisas a respeito disso. Estamos criando um centro de estudos que focará em maneiras de usar a tecnologia no processo educacional, principalmente para ensinar a ler. Cabe-nos encontrar formas de usar a tecnologia como ferramenta de ensino. O nosso personagem Elmo, aqui nos Estados Unidos, envia letras para celulares de crianças. Com isso, 75% dos pais de baixa renda que participaram da iniciativa disseram que seus filhos aprenderam mais rápido o alfabeto.
Veja – A obesidade infantil tem crescido tanto que há um número sem precedentes de adolescentes com diabetes tipo 2. Como o senhor vê esse problema?
Knell – Obesidade é um assunto muito complexo. Tem a ver com a tecnologia que torna mais fácil viver num mundo de realidade virtual e também com pais que, com medo da insegurança nas ruas, não deixam seus filhos sair de casa. Até mesmo as escolas estão cortando as horas de educação física. Quando cresci, na década de 60, os comerciais de televisão já vendiam comidas com açúcar para crianças, mas o nosso estilo de vida era diferente, mais ativo.
Veja – Os videogames estão abusando da violência?
Knell – Não é a questão de a tecnologia ser ruim ou boa, mas de usá-la da maneira certa. Videogames podem perfeitamente promover ensinamentos positivos num contexto criativo. Acredito que é possível criar jogos que entretêm e ao mesmo tempo conduzem ao objetivo educacional. Como pais, temos de aproveitar essa tecnologia da forma correta. Afinal, ela é incrível. Como provedores de conteúdo, nosso trabalho é respeitar a audiência infantil. Devemos produzir uma programação apropriada, relevante e envolvente para a idade, em vez de explorar as crianças com propagandas que, na verdade, elas nem estão preparadas para entender.
Veja – Como Sesame Street pode conquistar a atenção das crianças se precisa competir com produções milionárias, como as da Disney e as da Pixar?
Knell – Gosto de dizer que somos um rato na pista de dança de elefantes. Somos totalmente guiados pela nossa missão e temos de mostrar com clareza nossos objetivos em cada projeto. O que nos faz únicos é a pesquisa para saber das necessidades em cada país. No Brasil, por exemplo, é preciso levar às crianças lições de alfabetização, matemática, respeito à diversidade e ao ambiente. Outras empresas não se importam em alcançar países da África, por exemplo, porque não há dinheiro para ganhar por lá. Elas distribuem seus produtos sem o trabalho de pesquisar sobre cada cultura.
Veja – Cerca de 40% da renda do Sesame Workshop vem de produtos licenciados. Foi preciso abrir mão do idealismo para sobreviver?
Knell – Nossa sorte é ter uma fonte de renda que nos permite sobreviver sem recorrer ao dinheiro da filantropia ou do governo, coisa que muitas empresas sem fins lucrativos têm de fazer. Boa parte dos recursos vem do licenciamento de nossa propriedade intelectual ou de nossos personagens. Dessa forma, as crianças podem brincar com o Elmo e o Garibaldo. O dinheiro que ganhamos com a venda de livros, CDs, DVDs, brinquedos e camisetas é revertido em pesquisas e na produção de nossos programas. Não temos acionistas, não visamos ao lucro. Nossa preocupação é com o uso apropriado de nossos personagens. Comida, por exemplo. Nossos personagens infantis só podem ser usados em produtos que estejam de acordo com um guia que estabelece certo padrão nutricional. Colocamos os personagens em sucos naturais e lanches saudáveis. Com isso, estamos abrindo mão de uma receita maior, que poderia vir de grandes empresas fabricantes de produtos mais populares, mas que não fazem tão bem para a alimentação infantil.
Veja – David Kleeman, diretor do Centro Americano para Criança e Mídia, que analisa a programação infantil nos Estados Unidos, diz que "não é a essência da criança que muda de geração para geração, mas o que está em volta dela". O senhor concorda?
Knell – Sim. Temos de proteger a inocência da infância, e no mundo de hoje essa é uma tarefa difícil. Nossas produções estimulam as crianças a sonhar e a se empenhar para atingir seu maior potencial, abrindo uma janela para o mundo ao redor delas. Na Índia, um país a caminho de ser a terceira maior economia do mundo, vivem 128 milhões de crianças entre 2 e 6 anos. Dois terços delas não recebem educação pré-escolar. No mundo árabe, apenas um terço dos 52 milhões de crianças dessa faixa etária completará o primário. Pense no impacto dessas iniciativas.
Veja – Como é criar quatro filhos na era digital?
Knell – Alguns pais talvez tenham sido melhores que minha esposa e eu, mas somos muito disciplinados em relação a videogames em casa. Não os abolimos totalmente, mas também não os compramos aos montes. Incentivamos nossos filhos a ler e a tocar instrumentos musicais. Os quatro são músicos, participaram de teatro na escola, praticam esportes e lêem bastante. Diz-se que, se você delega uma tarefa a uma pessoa ocupada, ela a executa melhor e ainda mais rápido que as demais. O mesmo vale para as crianças. É melhor que elas não tenham muito tempo ocioso nas mãos. Por outro lado, não vale a pena ser purista e fingir que essa tecnologia toda é maléfica – o importante é saber usá-la. Parte de ser pai e mãe no século XXI é compreender como colocar essas tecnologias em perspectiva para o benefício das crianças. É isso que tentamos fazer
Entrevista:O Estado inteligente
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