O deboche dos privilegiados
da USP
"Se os estudantes uspianos não estão satisfeitos
com as medidas implementadas pelos legítimos
defensores do poder público, que dialoguem
ou peçam transferência para escolas privadas"
Clayton de Sousa/AE |
Ocupação da reitoria da USP: bem público usurpado por uma minoria |
A invasão da reitoria da USP por um grupo de estudantes, que já dura mais de vinte dias, é um dos retratos mais acabados das várias mazelas que continuam a condenar o nosso país ao atraso.
Começa pela rendição dos interesses de estado às demandas privadas. Os alunos da Universidade de São Paulo (USP) são os mais afortunados do país. Estudam gratuitamente naquela que provavelmente é a melhor universidade brasileira, mesmo quando oriundos de famílias dotadas de amplíssimas condições de pagar por seus estudos – nos cursos concorridos, como medicina, direito, arquitetura, administração e engenharia, a média de renda familiar do alunado que adentrou a USP em 2007 é de mais de 6 000 reais mensais, ou quatro vezes maior do que a média da população brasileira. Não bastasse esse subsídio direto, ainda contarão com as benesses oriundas da posse de um diploma de ensino superior em um país de iletrados: a taxa de retorno a um ano de estudo universitário no Brasil está entre 18% e 20%. Cada ano que uma pessoa cursa de universidade aumenta seu salário por essa magnitude, e aqueles que freqüentam uma boa universidade provavelmente obtêm retornos maiores ainda. Além disso, os alunos da USP contam com todo tipo de facilidade para que sua estada na torre de marfim, financiada pelos impostos desembolsados por todos aqueles que pagam o ICMS paulista (o que provavelmente quer dizer toda a população brasileira), seja o mais amena possível: contam com subsídios para moradia, alimentação, estacionamento e até xerox. Ademais, só precisam dividir cada professor com quinze colegas, havendo também um funcionário técnico-administrativo para servir a cada cinco alunos (nas universidades particulares, para se ter idéia do desperdício, a relação de funcionários é de um para 23 alunos).
Seria de esperar que os recipientes de tamanhos benefícios se sentissem compungidos a procurar maneiras de retribuir à sociedade pela generosidade dispensada em sua formação intelectual. Ocorre o oposto. Abastecidos há tanto tempo de tamanhas mordomias, os alunos da USP finalmente se sentem donos da instituição, a ponto de invadir sua reitoria, como forma de protestar a busca de maior transparência do governo de São Paulo, mantenedor da instituição. Investimos tanto na formação de doutores, esperando que pudessem usar suas ferramentas dialéticas para convencer-nos da justeza de sua causa pela via da argumentação e do debate, e colhemos como resultado uma manifestação de brucutus, que recorrem à força física e ao desrespeito às leis para se fazer ouvir. Trata-se do braço livresco do MST, com a agravante de que não servem nem para capinar uma roça e precisam que a mãe lhes traga abrigos para evitar o frio. Alguém deveria lembrar aos nossos bacharéis que a USP não é propriedade dos alunos, nem dos professores, nem dos funcionários: é do povo de São Paulo. Povo esse que elege democraticamente seus representantes para fazer cumprir a sua vontade. Em um regime democrático, apenas esses representantes é que têm a soberania para ditar os rumos da universidade.
Confundiu-se autonomia administrativa com autarquização, como se a USP fosse isenta de prestar contas à comunidade que a mantém e de agir na defesa dos interesses dessa coletividade. Imaginar que os estudantes possam ditar os rumos de uma universidade pública é como aceitar que a política carcerária seja ditada para atender aos interesses dos presos, que a política fiscal seja conduzida por empresários ou que o planejamento urbano seja ditado por motoristas. O compromisso da USP não é para com seus alunos, mas para com o bem público. Se os estudantes uspianos não estão satisfeitos com as medidas implementadas pelos legítimos defensores desse poder público, que dialoguem com ele. Se não ficarem satisfeitos com o resultado desse diálogo, que transfiram sua matrícula para uma universidade privada, em que os clientes do serviço prestado são apenas os alunos, e não a sociedade.
Gustavo Ioschpe é economista