Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, maio 25, 2007

Corrupção Operação da PF tem 1 giga de provas

1 giga de corrupção

No arquivo de provas colhidas pela PF, gravadas
em um DVD a que VEJA teve acesso, desenha-se
um retrato devastador da quadrilha de Zuleido:
ousada, ativa e certa da impunidade


Diego Escosteguy

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Perguntas e Respostas: Operações da PF

A Operação Navalha, que desmontou uma quadrilha de assaltantes de verbas públicas, trouxe à tona conexões criminosas em quatro ministérios, revelou laços em seis estados nordestinos, enlameou a biografia de quatro governadores e ex-governadores, além de dois prefeitos e um deputado, e derrubou um ministro – Silas Rondeau, de Minas e Energia. Como a quadrilha logrou criar tantas ramificações, do governo federal a prefeituras do interior? Como conseguiu corromper desde altas autoridades da República, como se suspeita que tenha acontecido com Silas Rondeau, acusado de receber propina de 100.000 reais, até burocratas de quinto escalão de pequenos municípios, como o funcionário da prefeitura de Camaçari que se vendeu por uma passagem aérea de 600 reais? As respostas podem ser encontradas no inquérito da Operação Navalha, a cuja íntegra VEJA teve acesso. O arquivo, em formato de DVD, ocupa 1 giga e tem 52.000 páginas. Contém relatórios de vigilância, vídeos, centenas de gravações de telefonemas e transcrições de diálogos. O material revela a existência de uma quadrilha rudimentar, dona de métodos quase toscos, mas muito ousada – e que atuava com extrema liberdade, como se tivesse a certeza de que nunca seria flagrada na ilegalidade. Se o DVD fosse colocado à venda, como as autoridades que aparecem nele, poderia receber o título de "O Show da Corrupção" e seria na certa um sucesso.

No DVD da corrupção, há um retrato devastador do engenheiro Zuleido Soares Veras e de sua Gautama, a empreiteira-rainha do esquema. As gravações trazem toda sorte de conversa entre integrantes da quadrilha. Há diálogos de deputado cobrando propina, de lobista orientando pagamento de suborno, de advogado plantando nota contra inimigo. Há conversas desabridas sobre compras de sentenças judiciais, negociações de emendas parlamentares e métodos de corromper servidores. Há diálogos didáticos sobre como funciona a sinergia entre corruptos e corruptores: deputado informa que conseguiu aprovar emenda para a obra da Gautama – e é parabenizado por seus bons serviços! O que não há, em nenhuma das 585 interceptações feitas pela PF, é conversa de Zuleido sobre o andamento das obras de sua empreiteira. Pudera: as obras da Gautama nunca ficam prontas. Adepto do budismo, Zuleido homenageou Sidarta Gautama, o Buda, ao batizar sua empresa. Entre os ensinamentos do budismo, consta que o mundo material é uma ilusão provocada pela imperfeição dos sentidos humanos. O DVD das provas sugere que Zuleido criou uma vertente nova da tradicional filosofia oriental, o cleptobudismo. Suas construções inacabadas, pontes que ligam o nada a coisa alguma, são isso mesmo: ilusão. Pobre Buda. Sobreviveu 2 500 anos como símbolo de pureza e desprendimento para acabar como sinônimo de roubalheira no Brasil.

José Cruz/ABR
Dida Sampaio/AE
Rondeau, o ex-ministro de Minas e Energia (à esq.) acusado de receber 100 000 reais, e Adylson Motta, ministro aposentado do TCU (à dir.)

Para produzir suas miragens, a Gautama usava tentáculos múltiplos. Chegaram até o Tribunal de Contas da União, que examina hoje mais de trinta processos sobre irregularidades em obras da Gautama. Eis o motivo pelo qual a empreiteira tinha tanto interesse no TCU. Ali, trabalha Guilherme Palmeira, parente de Fátima Palmeira, diretora da Gautama. Em um diálogo telefônico, Zuleido conta a seu interlocutor que o ministro Augusto Nardes deverá pedir vistas de um processo de sua empresa. Nardes pediu mesmo vistas horas depois do telefonema. Como um ministro só pode pedir ou não vistas de um processo, há chance de Nardes tê-lo feito dentro da normalidade. Mas pode não ter sido apenas mera coincidência. A investigação vai esclarecer esse ponto. Em outro diálogo, fica evidenciada uma relação estreita entre o ministro Adylson Motta, que se aposentou do tribunal em agosto passado, e o lobista Sérgio Luiz Pompeu Sá, que, antes de ser preso, defendia a Gautama no Ministério de Minas e Energia (veja diálogos no quadro). A investigação ainda vai elucidar essas questões.

A desenvoltura da quadrilha da Gautama deve-se ao ambiente em que atuava. Afinal, a empreiteira comprava políticos (que apresentam emendas ao Orçamento para as obras), subornava servidores públicos (que decidem sobre a liberação de verbas para as obras) e tinha influência junto ao TCU (que fiscaliza a lisura com que são feitas as obras com verbas federais). Estava fechado o círculo, ainda que o esquema nem sempre funcionasse como o desejado. Nos diálogos, constata-se que, numa ocasião, alguém embolsou uma propina prometendo que o TCU tomaria uma decisão favorável à Gautama, mas deu-se o contrário. Prospera então uma cômica revolta na quadrilha. Em uma conversa com Fátima Palmeira, da Gautama, uma lobista identificada apenas como Ivanise, apelidada de "Oncinha", desconsola-se: "A pessoa que fez vai ter que me devolver o dinheiro para eu devolver para você". Replica a diretora da Gautama: "Só quero o dinheiro na minha conta". Em outra conversa, com Zuleido, ela relata com amargura o tombo da propina: "Botaram para roubar em cima da gente".

Fabio Motta/AE
Fernando Sarney: ele recebia com freqüência o ex-ministro Rondeau em seu escritório


As 585 gravações abrangem o período que vai de junho do ano passado a abril deste ano. Sempre aparecem menções explícitas a dinheiro e referências claras a autoridades. Podem ser só bravatas de gente querendo se passar por influente, mas são sempre inequívocas. O governador de Sergipe, Marcelo Déda, do PT, aparece de forma pouco comprometedora, apenas porque seu vice teria facilitado uma obra da Gautama. O governador de Alagoas, Teotonio Vilela Filho, do PSDB, também surge sem referência consistente, mas sua situação é mais delicada devido à devastação que a Operação Navalha causou em seu governo. Cinco de seus auxiliares foram presos pela PF – e o governador, como que inspirado pelos melhores momentos do petismo, disse que não sabia de nada. Há, por fim, conversas que entregam abertamente os servidores da quadrilha. Um citado é Mauro Barbosa, presidente do Dnit. Ele nega qualquer envolvimento. Outro é Rodrigo Figueiredo, segundo homem do Ministério das Cidades, apontado pela PF como um dos servidores que ajudavam a liberar verba pública para os cleptobudistas.

Nas gravações, há uma profusão de apelidos, a começar por Zuleido, que, com seu ar de pistoleiro do Velho Oeste, é chamado ora de "Charles Bronson", ora de "Mexicano", ora de "Bigode". Há "Cabeça Branca", "Indiozinho" e "Ferrugem". No reino animal, além da impagável Oncinha, aparecem "Sapinho" e "Calango". Mas os apelidos não são um meio para despistar um grampo. São apelidos reais, que todos conhecem. Nenhum é tão freqüente nas gravações quanto "Kibe". Kibe é Latif Abud, ex-sócio da Gautama e desafeto de Charles Bronson, ou Mexicano, ou Bigode. Em 2002, Kibe saiu da Gautama e nunca deixou de azucrinar os ex-sócios. Nas gravações, só dá Kibe. É Kibe para cá, Kibe para lá. A quadrilha detesta Kibe. Certa ocasião, exasperada com a interminável cruzada de Kibe, que àquela altura já abastecera inclusive a PF sobre a roubalheira da Gautama, a quadrilha debateu possíveis ações jurídicas contra Kibe. Reclamou da "passividade" de Zuleido. Diz o lobista Sérgio Sá: "Zuleido é muito mole. Não sei como ele agüenta. Tem de encerrar logo isso".

As ações da quadrilha eram tão abertas quanto seus diálogos. Seus integrantes foram filmados e fotografados em situações suspeitas. A polícia filmou a diretora Fátima Palmeira levando um envelope a uma sala contígua ao gabinete do agora ex-ministro Silas Rondeau. Segundo a polícia, o envelope continha 100 000 reais. Rondeau é a mais alta autoridade abatida pelo escândalo até agora. Antes de pedir demissão, fez questão de consultar seus padrinhos políticos – os senadores José Sarney e Renan Calheiros. Faz sentido. O ex-ministro tem laços sólidos com a família Sarney. Quando era ministro, Rondeau tinha o hábito de aparecer no escritório de Fernando Sarney, filho do senador, em Brasília. Eles costumavam ir a um restaurante próximo, o Cielo, onde comiam numa sala reservada no subsolo. O ex-ministro deixou o cargo abalado, mas jurando inocência. Diz que não pegou a propina de 100 000 reais e dá a entender que, se ela entrou no ministério, então ficou no gabinete de seu auxiliar Ivo Almeida da Costa – preso e já demitido.

Como consolo, o ex-ministro pode alegar que não era a única autoridade distraída no escândalo. Outra é o senador Delcídio Amaral (PT-MS), que foi beneficiado pela Gautama – e não sabia. O senador explicou que precisava viajar a Barretos, no interior de São Paulo, para o enterro do sogro e pediu a um amigo que alugasse um avião. O amigo atendeu o pedido, mas não teria informado ao senador que Zuleido pagara o aluguel – no caso, 24 000 reais. Delcídio, distraidamente, nunca perguntou ao amigo quem pagou o avião nem quanto custou. Outro distraído é o governador da Bahia, o petista Jaques Wagner, que levou a ministra Dilma Rousseff num passeio na lancha de Zuleido. Primeiro, o governador disse que a lancha fora alugada por um amigo, o lobista Guilherme Sodré, e que desconhecia a identidade do dono. Até informou o valor do aluguel: 5 000 reais. Onde estaria a nota fiscal? Diante de pergunta tão complexa, o governador mudou a versão. Afirmou que o amigo-lobista pedira a lancha emprestada a Zuleido sem que ele soubesse. Sodré (que foi casado com a atual mulher do governador e hoje é casado com a chefe do cerimonial do governador) trabalha para Zuleido Veras. Jaques Wagner diz que não sabia. Quanta distração!

Com tudo o que já veio a público, fica claro que o esquema da Gautama era vasto, eclético, dinâmico. Isso trai a impressão de que, desde o escândalo do Orçamento, em 1993, as empreiteiras estariam retraídas e teriam deixado de ser as mais vorazes mordedoras de emendas e pagadoras de propina. No DVD da corrupção, há indícios do que pode vir a ser uma segunda etapa da Operação Navalha – envolvendo exatamente duas grandes empreiteiras. Elas estariam implicadas em fraudes de licitações milionárias. Uma outra, a GDK, baiana que deu o Land Rover de presente ao então secretário do PT Silvio Pereira, já entrou na alça de mira: a suspeita é que tenha se envolvido com grampos telefônicos clandestinos. Conforme a polícia, a escuta foi realizada e, no dia 4 de abril, a GDK pagou 10.000 reais pelo serviço. A PF ainda não sabe quem foi espionado ilegalmente, nem o motivo. A GDK nega tudo. Mas, do jeito que as coisas estão, não será surpresa se a Operação Navalha cortar ainda mais fundo do que escalavrou até agora.

Com reportagem de Ricardo Brito

A casa e a lancha



Alexandre Oltramari
Eduardo Martins/Ag. A Tarde

O empreiteiro Zuleido Veras, dono da Gautama, é um homem pacato. Seu principal lazer nos fins de semana é ficar recluso em sua residência, nas franjas de Salvador. Instalada num terreno de 15 000 metros quadrados, equipada com piscina, campo de futebol, quadra de tênis e trilha para caminhada, a casa está avaliada em 5 milhões de reais. Outro patrimônio vistoso é sua lancha Clara, que vale uns 3 milhões de reais. A lancha, que foi usada num passeio pelo governador da Bahia, Jaques Wagner, e pela ministra Dilma Rousseff, tem 52 pés, três suítes, ar-condicionado e ice maker.

Negociatas às claras

Nas 585 gravações telefônicas feitas pela Polícia Federal, os diálogos têm uma característica comum – todos eles são despudoradamente claros. Os interlocutores, por se julgar acima da lei ou por acreditar que jamais seriam flagrados na criminalidade, falam das negociatas sem pejo, evitando apenas expressões muito comprometedoras, como propina, suborno, corrupção. A seguir, alguns exemplos em conversas inéditas:

"ACERTOU O ESQUEMA"

Neste diálogo, interceptado às 9h21 do dia 13 de julho do ano passado, o lobista Sérgio Sá fala abertamente de um acerto no Dnit, o órgão que cuida das estradas no país. Na conversa, o lobista, talvez convicto de sua impunidade, nem se dá ao trabalho de falar por códigos ou usar frases cifradas. Ele conta a Maria de Fátima Palmeira, diretora da Gautama, que esteve com o diretor do Dnit, Mauro Barbosa, e que o acerto está feito: o dinheiro vai ser liberado – ou "delegado", como se diz no jargão – para a Rodovia BR-020. A Engevix, de Sérgio Sá, faz o projeto, e o restante fica por conta da Gautama. Tudo muito simples.

Sérgio Sá: Eu tive ontem com o Mauro, no Dnit. Acertou já a delegação. Nós, a Engevix, vamos fazer o projeto básico e o executivo. Acertou o esquema da obra lá para vocês.

Fátima: Tá jóia, fechado.

"CONVERSAMOS BASTANTE"

Esta conversa entre o lobista Sérgio Sá e o dono da Gautama, Zuleido Veras, transcorreu às 22h43 do dia 12 de julho de 2006. A gravação mostra a naturalidade com que o lobista se encontrava com o então ministro de Minas e Energia, Silas Rondeau, e tratavam de assunto que deveria ser sigiloso, como editais de licitações.

Zuleido: E aí?

Sérgio Sá: Foi tudo tranqüilo. Estivemos lá com o Silas. Tava tudo já encaminhado dentro da Eletrobrás com relação ao resto do dinheiro do Luz para Todos. Conversamos bastante sobre a questão dos editais. (...) Foi uma visita boa no final de tarde.

Zuleido: Humm...

"É UM ABSURDO"

Nesta conversa, gravada às 12h25 do dia 29 de agosto do ano passado, o lobista Sérgio Sá fala com o empreiteiro Zuleido Veras. Ele diz que o então ministro

Adylson Motta, do Tribunal de Contas da União, fará uma reunião em sua casa com o procurador-geral do tribunal, Lucas Furtado. O assunto é um caso em que a Gautama estava enrolada. Neste diálogo, tudo é estranho: ministro recebe lobista, ministro convoca procurador, procurador se explica, lobista reclama... A conversa sugere que se trata de uma quadrilha capaz de manipular decisões do TCU.

Sérgio Sá: Adylson chamou Lucas na casa dele à 1 e meia. Tenho que chegar um pouco antes. Deixa o celular ligado que te informo.

Zuleido: O.k.

Horas mais tarde, às 16h56, o lobista comenta com Fátima Palmeira, diretora da Gautama, o teor da reunião na casa do ministro Adylson Motta.

Sérgio Sá: O Lucas levou só os pareceres dos processos. Quando cheguei lá, o Adylson leu e ficou p... para c... Ele falou assim: "Faz de conta que eu não vi isso."

Fátima: É um absurdo!

Sérgio Sá: E tem outra, né? Combinado é combinado.

"PÃO, PÃO, QUEIJO, QUEIJO"

Às 19h09 do dia 12 de março deste ano, Fátima Palmeira, diretora comercial da Gautama, fala com uma lobista identificada como Ivanise "Oncinha". Elas conversam sobre a compra de um parecer do Tribunal de Contas da União (TCU). O diálogo é um escândalo, por sugerir que os pareceres são negociáveis, e emblemático, por mostrar que as propinas eram pagas contra serviços 100% certos. Fátima pede para ler o parecer antes de tudo.

Fátima: Se for para resolver resolvido, ele topa (refere-se ao empreiteiro Zuleido Veras). Agora, eu teria que pelo menos dar uma olhada antes, né?

Ivanise: Queria o quê?

Fátima: Teria que olhar o que está realmente escrito para ter certeza de que está tudo o.k.

Ivanise: Tá, claro. É uma coisa pão pão, queijo queijo.

"NORMAL NÃO FOI NÃO, NÉ?"

Neste diálogo, interceptado às 10h48 do dia 6 de julho do ano passado, Rodolpho Veras, filho de Zuleido, conversa com o administrador da fazenda do pai, Henrique Garcia de Araújo, sobre uma compra de gado – meio usado para lavar dinheiro de corrupção. O capataz conta que precisa levar documentos para o vendedor do gado, e o filho de Zuleido, talvez por temer um grampo, afirma que a compra foi regular. O capataz, sem entender o cuidado do interlocutor, deixa claro que era tudo picaretagem.

Rodolpho Veras: Foi uma compra normal, tá?

Henrique de Araújo: Ué, normal não foi não, né, Rodolpho? Esse gado não vale 10% do valor que está na nota aqui.

Fotos Ailton de Freitas/Ag. O Globo


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