de figurões algemados, nem o batismo de operações policiais ou mesmo
simbolismos estrambóticos, como a apropriação do sobrenome do "sábio
do povo shakya", o príncipe Sidarta Gautama, mais conhecido como
Buda, para designar uma empresa-braço da corrupção que se alastra
pelos desvãos da República. A razão para a desesperança repousa na
nova composição do poder dentro do Estado contemporâneo, e que, entre
nós, se consolida por encontrar melhores condições para se expandir.
A administração pública, a política e empresas privadas são os pólos
da tríade que efetivamente tem o comando dos empreendimentos
necessários ao País, alguns deles desvirtuados para ingressarem no
balcão de negócios. Por sua abrangência e, mais que isso, pela
imbricação de seus eixos, a triangulação perigosa passa a ser o foco
de investigações da Polícia Federal, deixando à mostra um paradoxo: o
Produto Nacional Bruto da Corrupção vem crescendo, ao contrário do
que se propaga.
A hipótese agrega um conjunto de variáveis, como a fluidez do Estado,
a imbricação de fronteiras entre os Poderes constitucionais, a
transformação da política em profissão altamente rentável, a
fragilidade dos mecanismos de punição, a morosidade da Justiça, a
rotação de dirigentes e a cultura regada com a semente do
fisiologismo, herdada dos nossos colonizadores. Tais vetores
funcionam como lubrificantes da engrenagem de um novo ajuntamento de
forças, que passa a reorganizar o corpus da administração pública,
subordinando o interesse geral à salvaguarda de grupos. O salto do
patrimônio de alguns políticos entre uma campanha e outra foi
demonstrado por pesquisa. No ciclo FHC, o patrimônio de 32
congressistas, denunciados como mensaleiros e sanguessugas, cresceu
15%. No governo Lula, esse mesmo grupo aumentou em 31,7% seu
patrimônio. Mais: os mesmos parlamentares, em 2002, gastaram em
campanhas eleitorais R$ 6,3 milhões, montante que, em 2006, chegou
aos R$ 47,9 milhões (aumento de 661%). Não se pretende aduzir que
esse grupo tenha feito tramóias ou ganho dinheiro de forma desonesta.
Muitos têm negócios fora da política e são empreendedores. Mas fica
uma suspeita no ar.
É inimaginável. A corrupção se expande sob a lupa de instrumentos de
controle, entre os quais a Controladoria-Geral da União, a Polícia
Federal e o Ministério Público. O número de denunciados em escândalos
cresce, fato que o governo procura capitalizar em sua conta ao
acentuar que "nunca se combateu tanto a corrupção quanto agora". Pode
ser. Não dá, porém, para esconder a evidência: há mais criminosos
porque a teia do crime ficou mais extensa. Sob os holofotes da mídia
e o selo da eficiência, as operações policiais se sucedem, chamando a
atenção pelo espalhafato. De 2006 até hoje, 221 ações foram
realizadas. As CPIs também fazem o espetáculo. Mas os feitos acabam
gerando uma reversão de expectativas, até porque o odor do marketing
contamina a efetividade das operações. Após o impacto inicial, as
ações sensacionais perdem força. O jacaré vira lagartixa. Espraia-se
o sentimento de que tudo acaba em pizza. Os mensaleiros de ontem se
safaram, alguns por obra e graça do corporativismo, outros
renunciando aos cargos para voltarem ao Parlamento com as bênçãos dos
eleitores. Nenhum dos 72 parlamentares acusados de ligação com a
máfia das ambulâncias foi condenado. A lentidão da Justiça corrobora
a sensação de impunidade. Veja-se a Operação Hurricane, que só
ocorreu por conta da lerdeza judiciária. Os bingos vinham funcionando
sob a proteção de liminares, até que se deu o flagrante da compra de
sentenças para seu funcionamento. Como se pode exigir solidez
institucional num país que eterniza situações sub judice? Só mesmo
aqui provisório é sinônimo de permanente.
Nas salas dos tribunais, a fila dos algemados se desfaz ante o
império da lei. Liminares para soltura são concedidas. Autoridades se
digladiam por conta disso. Mas a norma é clara. Ninguém é culpado
antes de ser julgado. Enxerga-se aí o raio X do Estado-espetáculo. As
prisões se encaixam na modelagem do marketing de um governo que
prega: não distinguimos "colarinhos-brancos" e anônimos na multidão.
Na seara política, a cultura de autopreservação anima os atores, até
porque os casos atingem quase todos os partidos. A Operação Navalha
envolve membros de nove partidos, enquanto na máfia dos sanguessugas
foram acusados 72 deputados e senadores de nove siglas. Pela porta do
mensalão, entraram 22 parlamentares de oito legendas.
A polêmica abriga, ainda, o foro privilegiado, destinado a dar
guarida ao mandato de representantes eleitos e à autoridade de
juízes, promotores e ministros de Estado. Há cerca de 700 autoridades
dos três Poderes nessa condição. A contrariedade se forma pela
recorrência ao princípio constitucional da igualdade. A discussão de
cunho ético-moral-jurídico embute a questão: a nomeação do magistrado
pode ter sido aprovada pelos potenciais indiciados.
Este é o arcabouço dentro do qual se fecham as combinações entre os
eixos do novo triângulo do poder, cujo fortalecimento exige, em
contrapartida, mecanismos para coibição de desvios. E aqui se chega
ao orçamento impositivo como meio para tirar parlamentares,
governadores e prefeitos do jugo do governo federal. Sua aplicação
fechará uma grande torneira da corrupção, porque tornará obrigatória
a execução do Orçamento-Geral da União, evitando que o Executivo
mantenha a condição de liberar verbas. Com torneiras abertas,
empresas como a Gautama e pessoas como Zuleido continuarão a agir nos
intestinos da administração. E até a usar, como disfarce, a figura de
Buda, o príncipe que renunciou às coisas materiais para se dedicar à
busca da Verdade. Coisas materiais que fazem a festa das quadrilhas.
E que os criminosos gostariam de ver muito bem escondidas.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e
consultor político. E-mail: gautor@gtmarketing.com.br