novos pobres: de esperança e de boas causas
José de Souza Martins*
Pouco mais de uma centena de alunos apresentou-se à porta da Reitoria
da Universidade de São Paulo no dia 3 de maio. Queriam entrar no
prédio para entregar à reitora, ausente na Espanha em viagem de
trabalho, suas reivindicações. Ela não comparecera a suas assembléias
para condenar, como se estudante fosse, as duas medidas do governo de
José Serra que estão questionando: a criação da Secretaria de Ensino
Superior, e a medida que altera e regula a prestação diária de contas
ao sistema que disso trata.
Aparentemente, preocupados em manter a postura de seletos cidadãos,
escolhidos na peneira de malha fina do vestibular, os jovens
invasores trataram logo de demonstrar que são filhos-família. Não só
bem comportados nas comezinhas obrigações da limpeza, mas também
estabelecendo regras que os fazem legítimos descendentes do ordeiro e
criativo representante da burguesia americana, Benjamin Franklin, o
inventor do pára-raios e da biblioteca pública. Aquele que em sua
autobiografia menciona um conjunto simples de regras de conduta do
cidadão bem comportado, que iam da temperança no sexo e na comida ao
preclaro reconhecimento de que parecer ser é que dá sentido ao ser.
Assim também os ocupantes da reitoria trataram de estabelecer regras
de temperança proibindo, felizmente, as bebidas alcoólicas, que os
mostrem como cidadãos prestantes e de boa conduta, apesar do ato
violento que os pusera dentro da Reitoria. Um aluno de História levou
a própria mãe para inspecionar o recinto em que o filho faz sua
estréia como revolucionário, sem se degradar na anomia própria de
toda revolução.
Não faltou nem mesmo o trato correto dos jardins internos da
reitoria, a ponto de que o jardineiro oficial, que decidiu passar por
lá, não tivesse outro remédio senão elogiar o substituto na
emergência e estender-lhe a mão. Verdadeiros escoteiros de esquerda,
só isso deveria dar o que pensar tanto à Justiça que determinou o
despejo quanto ao coronel que abraçou sorridente, para os fotógrafos,
um constrangido líder da revolta. Deferência que se deve valorizar,
pois não é esse o tratamento da mesma tropa a favelados e miseráveis
despejados em atos semelhantes de reintegração de posse. Como disse
George Orwell, em A Revolução dos Bichos, todos são iguais, mas
alguns são mais iguais.
As reivindicações político-partidárias do pequeno grupo seriam
conduzidas de maneira mais eficaz e apropriada por meio dos canais
legítimos de representação e manifestação do corpo estudantil da
universidade. Isso se não representasse o ato violento o fato de que
esse grupo não se reconhece representado pelos grupos corporativos,
como os seus, aliás, que monopolizaram a representação, os interesses
e a opinião estudantis nas instâncias de decisão da universidade.
Curiosamente, a insurgência juvenil no campus universitário está
longe de ser, em primeiro lugar, insurgência contra os atos do
governador, alegadamente aglutinantes das várias convergências do ato
insólito: de alunos, professores e funcionários. A insurgência tem
como primeiro destinatário o PT, com o qual, neste movimento, estão
em luta as facções que protagonizam a ocupação da reitoria. Embora os
estudantes bem comportados se apresentem como apartidários, estão
vinculados a facções em conflito com o PT, que romperam com a UNE,
que se opõem à atual direção do Diretório Central de Estudantes, a
qual contestam e consideram traidora. Ora, essas entidades estão nas
mãos do PT, que nelas se encastelou, como em outras, na onda de bem
planejada expansão do partido e aparelhamento de órgãos públicos,
instituições religiosas e entidades de representação de diferentes
categorias sociais. Tentam tirar-lhe o domínio o PCO e o PSTU, que no
ato da ocupação pretenderam precipitar e disputar entre si o
esvaziamento do PT na militância universitária.
Governo e universidade, desde o fim do regime militar, imaginam que o
conflito de gerações está resolvido. O conflito que expressa o mal-
estar e o vazio em que se movem as novas gerações permanece latente
nas brasas acesas que se ocultam sob as cinzas de uma calmaria de faz-
de-conta. Uma demorada contenção de suas manifestações se deveu ao
longo período em que se deu a irresistível ascensão política do PT,
que culminou com a eleição de Lula à Presidência da República. A
esperança foi adiada e deu lugar a uma aparente acomodação. Mas a
transformação do PT num partido do poder, e dos compromissos
conservadores e imobilistas do poder pelo qual optou, forçou-o a
expor os limites de sua ousadia política e a abandonar compromissos.
Trata-se de uma geração órfã, que já não tem grandes batalhas a
travar, que padece o problema da falta de um grupo extrafamiliar de
referência minimamente estável. Sobra-lhe a universidade, instituição
passageira em suas vidas. Os operários têm a sua classe como fator de
identidade e luta; os camponeses têm suas organizações sindicais e
parassindicais e a terra como referência utópica; a classe média dos
docentes tem ainda, felizmente, as grandes causas do ensino e da
cultura. Os jovens de classe média não têm nada. São os novos pobres:
pobres de esperança, pobres de futuro, pobres de boas causas. Acabam
defendendo as causas alheias. No pedido de fim da jubilação dos
repetidamente reprovados e dos que abandonam o curso, reivindicam a
adolescência perene. No fundo, a rebelião da Cidade Universitária é
uma rebelião romântica, cheia de beleza juvenil, infelizmente vazia
de conteúdo histórico. Sobra aos acampados o pequeno propósito de
ocuparem a reitoria que tem dentro de si, como grafitaram numa
parede. De qualquer modo, governo e universidade deviam ouvir com
respeito o zumbido e a verdade que vêm da reitoria, quando os
estudantes acampados pedem a Raul Seixas que cante por eles: "Eu sou
a mosca que pousou na sua sopa".
SEXTA, 25 DE MAIO
"Exploração política"
O governador de São Paulo, José Serra, afirma que existe exploração
política na ocupação da USP: "Há um grupo que tem motivação de
natureza política e, alguns outros, político-eleitoral. Não se trata
puramente de reivindicações, até porque elas mudam a cada dia".
*José de Souza Martins é professor titular de Sociologia da Faculdade
de Filosofia da USP