O governo do Rio trava guerra com
bandidos para retomar área que se
tornou um enclave de narcotraficantes
Ronaldo Soares
Custódio Coimbra/Ag. O Globo |
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A imagem que se vê na foto acima é apenas uma fatia, um naco da favelização que se espalha por cinco bairros da Zona Norte do Rio de Janeiro, no aglomerado conhecido como Complexo do Alemão. Espremem-se ali 130.000 pessoas em dezoito favelas, numa região que já foi industrial e hoje é o maior cemitério de fábricas da cidade. A imensa favela que se vê não surgiu em um descampado pela simples ação de invasores. Boa parte dos barracos ocupa o lugar em que antes havia uma cidade formal, que sucumbiu e se degradou. Essa é a gênese da imensa trincheira que se formou ali. Tomada pelos traficantes, a região virou um enclave em meio à cidade. É nesse cenário que se desenrola, há mais de duas semanas, uma guerra sem precedentes no Rio entre a polícia e os traficantes. A contagem de baixas já registra dezesseis mortos e cinqüenta feridos. Quase todos os feridos, aliás, são moradores atingidos pelos próprios traficantes, que pretendiam jogar a opinião pública contra a polícia. O que está em jogo ali não é apenas prender bandidos. O desafio do governo fluminense é reincorporar à cidade a região onde o tráfico de drogas impõe suas leis. Quem manda ali é o Comando Vermelho. O que está em jogo é o futuro da luta da cidade e do estado contra a bandidagem. Em caso de fracasso no Complexo do Alemão, a guerra terá sido perdida no Rio.
Desmantelar o que é hoje uma das principais bases de operações do narcotráfico no Rio tornou-se o desafio. Na semana passada, o próprio governador Sérgio Cabral se referiu ao Complexo do Alemão da seguinte forma: "Há ali um foco de terroristas e de pessoas do mal". A frase do governador dá a idéia da prioridade que a ação tem para o estado. Foi ali, em meio aos vales que se formam na Serra da Misericórdia, que aconteceram alguns dos crimes mais bárbaros de que se tem notícia. Um exemplo: no alto de um dos morros, o jornalista Tim Lopes foi julgado, torturado e morto, em 2002. É a partir dali que o Comando Vermelho se abastece de drogas, armas e munições para dominar a maioria das favelas da cidade. Um caderno de contabilidade do tráfico apreendido pela polícia mostrou que pelo menos 65 favelas enviavam dinheiro para uma espécie de caixa único da facção, operada a partir do complexo. O dinheiro serve para financiar ações criminosas, comprar armas e drogas e subornar policiais. Foi essa caixinha que financiou, por exemplo, a série de ataques a alvos civis que no fim do ano passado deixou dezenove mortos e mais de vinte feridos no Rio. "O que o governo está fazendo é emblemático. O Complexo do Alemão é o símbolo da perda de controle do poder público sobre o território", diz o economista André Urani, do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets).
Marcelo Carnaval |
Explosão da casamata dos traficantes no Alemão: fortificação usada em guerras |
Em mais de duas semanas de combates, a polícia ainda não conseguiu assumir o controle total da região. Escalada para a batalha, a tropa de elite da PM, o Batalhão de Operações Especiais (Bope), encontrou uma resistência incomum. Nas principais vias de acesso, os traficantes instalaram obstáculos formados por tonéis cheios de concreto e recheados com pedaços de trilho de trem. Tudo isso devidamente cravado no chão. Um expediente para impedir o acesso do blindado usado pela polícia, apropriadamente apelidado de Caveirão. O Bope teve uma dificuldade adicional. Os bandidos haviam construído uma casamata. Trata-se de uma fortificação usada em campos de batalha, normalmente camuflada (ela desaparecia na paisagem da favela), apenas com pequenos buracos. O suficiente para o cano das armas. Dali, pode-se atirar sem ser atingido, o que dá imensa vantagem na guerra.
Foram necessários quatro dias para que a polícia conseguisse tomar e demolir a casamata. Mas antes, para chegar até lá, teve de remover diversas barreiras. Foi preciso uma retroescavadeira – operada por um policial com colete à prova de balas e escoltado por outros dois colegas de farda. Nos dias seguintes, os traficantes reagiram. Jogaram óleo nas ruas, para atrapalhar a subida de blindados da polícia, e arrancaram estruturas de ferro que cobriam um valão na entrada das favelas, criando um fosso. Além de uma afronta à autoridade, a reação dos bandidos revela o risco político embutido na empreitada. Desmoralizada no Complexo do Alemão, a polícia do Rio estará colocando o novo governo na vala comum da ineficiência no combate ao crime. Na semana passada, bandidos circulavam normalmente com armas pela favela e até davam entrevistas. "Se fosse para a polícia confrontar 'com nós' (sic), tudo bem, mas eles atiram em morador", disse a VEJA um traficante que vigiava um dos acessos. Uma mentira repetida pelos facínoras no que se tornou uma batalha de informações em meio à guerra.
Marcia Foletto |
A polícia em ação: duas semanas de confrontos para retomar o território |
Diante da dificuldade que a polícia está encontrando para retomar aquele território das mãos dos traficantes, fica a pergunta: o que transformou uma região distante apenas vinte minutos do centro da cidade em um território inexpugnável? A resposta não é simples. Mistura vinte anos de abandono dos sucessivos governos, populismo que se alimenta dos votos dos favelados, políticas de segurança capengas e um terreno fértil em meio à desordem urbana produzida pela favelização. Vencer esse passivo é o trabalho do governo atual. Na semana passada, a polícia não concluiu a ocupação do lugar. Invasões de favelas são justificáveis, sim, mas não devem ser a norma. O estado tem de tomar conta do território, mas com o objetivo de permanecer por lá. O secretário estadual de Segurança, José Mariano Beltrame, garante que não foi um recuo. Tudo faria parte de uma estratégia. A guerra não terminou.
TRINCHEIRA URBANA
Monalisa Lins/AE |
O Complexo do Alemão é formado por um emaranhado de dezoito favelas que se estendem por cinco bairros da Zona Norte do Rio de Janeiro. O Comando Vermelho fez daquela região uma espécie de cidade-estado do tráfico, que abastece com drogas e armas as favelas da mesma facção.
• A quadrilha que domina o território conta até mesmo com o serviço de ex-militares com treinamento de tiro de precisão.
• Incluem-se em seu arsenal fuzis de guerra, pistolas semi-automáticas e até metralhadoras antiaéreas, com poder de fogo para derrubar os helicópteros da polícia. É a quadrilha mais bem armada da cidade.
• O faturamento com a venda de drogas é de cerca de 3,5 milhões de reais por mês. São vendidos ali, mensalmente, 120 quilos de cocaína e 400 de maconha.
• O índice de desenvolvimento humano do Complexo é o pior da cidade do Rio de Janeiro.
• A topografia do lugar, com uma sucessão de vales entre as montanhas, soma-se ao desordenamento produzido pela favelização. Criou-se uma trincheira urbana.