Biografia de chef suicida mostra o lado amargo
do sucesso na alta gastronomia francesa
Marcelo Marthe
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Sempre que se via estressado, o chef Bernard Loiseau saía para caçar nas proximidades de seu hotel-restaurante com uma espingarda que ganhara da mulher. Numa tarde de fevereiro de 2003, contudo, ele não sacou a arma para abater coelhos: deu cabo da própria vida. O suicídio de Loiseau, com um tiro na cabeça, aos 52 anos, caiu como uma bomba na França. Ele era um cozinheiro famoso num país onde a gastronomia desperta paixão. E o estopim da tragédia revelou-se tão impactante quanto o ato em si. O chef desesperou-se com o rumor de que seu estabelecimento perderia a classificação de três estrelas no Michelin – a distinção máxima do mais influente guia de restaurantes do mundo. Na biografia O Perfeccionista (tradução de Luiz Antonio Aguiar; Record; 420 páginas; 50 reais), sua história é dissecada por um conhecedor profundo do meio, o jornalista americano Rudolph Chelminski. Ele se propõe não só a desvendar a personalidade atormentada do personagem, mas também a investigar por que a alta gastronomia francesa é uma panela de pressão em que egos como o dele são cozidos até esfarelar-se. E cumpre com louvor os dois objetivos.
Para além de um negócio, a culinária na França é uma tradição que espelha valores nacionais. A excelência é levada tão a sério que se pode inclusive traçar um pequeno histórico de suicídios de gente que viu sua reputação ruir. É célebre o caso de François Vatel, que se matou com uma punhalada no século XVII depois que um banquete que organizou para a corte de Luís XIV deu errado. Hoje, a alta gastronomia tem também a ver com o entretenimento – o que só agravou as pressões. Como ocorre na moda, as tendências se sucedem com velocidade. Chefs saudados como deuses numa semana caem no esquecimento logo em seguida. Feitas as contas, diz Chelminski, a morte de Loiseau não chegou a surpreender. "Algo assim poderia ter ocorrido antes, e pode acontecer outra vez", pondera.
No panteão da culinária francesa, Loiseau situava-se logo abaixo de mestres como Paul Bocuse e os irmãos Jean e Pierre Troisgros – aprendeu o ofício, aliás, com esses últimos. Foi um expoente da nouvelle cuisine, tendência que reinventou a culinária francesa nos anos 1960 e 70 (e ficou conhecida pelas porções ínfimas). Foi também um precursor da transmutação dos chefs em celebridades. Marqueteiro, oferecia refeições gratuitas a jornalistas (que depois o cobriam de elogios) e tinha presença constante na televisão. Por baixo desse estilo expansivo, contudo, havia um sujeito problemático. Vítima do transtorno bipolar, ele alternava períodos de euforia e delírios de grandeza com longas depressões. Era um obcecado que via nas três estrelas do Michelin o único parâmetro aceitável de sucesso. Tão logo as conquistou, no entanto, o risco de perder a distinção passou a pairar como um fantasma sobre sua existência.
Nos anos 1990, sua paranóia entrou num crescendo, ao mesmo tempo em que seu estilo saiu de moda, substituído por tendências como a cozinha fusion (que promoveu uma certa globalização da gastronomia francesa). Quando sua cotação foi rebaixada pelo guia GaultMillau, competidor menor do Michelin, um Loiseau atolado em dívidas pressentiu o pior. Que, por ironia, acabaria não vindo: hoje administrado por sua viúva, seu restaurante continua a pertencer à elite de apenas 26 cotados com as três estrelas do Michelin na França.