Você acreditaria, meu caro leitor, se eu lhe dissesse que o governo
acabou de lançar uma medida que pode elevar a inflação e (apesar do
discurso oficial) dificultar a queda mais acelerada da taxa de juros?
Que pode (apesar do discurso oficial) apreciar ainda mais a taxa de
câmbio? Tudo isso para beneficiar alguns setores à custa da maioria
dos consumidores?
Pois é. Essa medida existe, não é ficção. Na semana passada, a Câmara
de Comércio Exterior (Camex) aprovou um aumento da tarifa de
vestuários e calçados para 35%, a máxima para o Brasil (e o Mercosul)
permitida pela Organização Mundial do Comércio (OMC). Não houve
exigência de contrapartida para os setores beneficiados - em
investimento ou modernização tecnológica. A medida atinge importações
de US$ 2 bilhões, 2% do total importado, e representa 6% da cesta do
Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), sob o item
vestuário.
Com o aumento de tarifas, os produtos afetados serão vendidos a
preços maiores, já que se diminui a concorrência dos importados.
Esses aumentos prejudicam o consumidor e elevam a inflação, o que
potencialmente poderia dificultar a queda da taxa de juros em ritmo
mais acelerado. Ao mesmo tempo, o aumento de tarifas reduz os gastos
com as importações, gerando sobras ainda maiores de dólares no
momento em que há pressões fortes para a apreciação da taxa de câmbio.
O ministro da Fazenda disse que cabe a medida para proteger a
indústria da concorrência desleal: "Se tem gente fazendo malandragem
ou usando instrumentos ilícitos, temos de reagir." Essa afirmação é
baseada apenas na constatação da existência de importados com preços
baixos, tornando-se ao mesmo tempo juiz e parte interessada (dos
setores afetados, não dos consumidores, que foram prejudicados). A
forma correta de lidar com práticas desleais, se este fosse o caso,
seria entrar com um processo de investigação.
Cabe aqui lembrar que o fenômeno dos preços baixos de produtos de
vestuário e calçados é mundial, em razão da emergência da China como
potência mundial. Na realidade, esse fenômeno trouxe muito benefício
para todos. A inflação caiu de forma sistemática em vários países,
permitindo a convivência com juros menores e um período relativamente
longo de prosperidade no mundo todo. Houve, é claro, impacto
desfavorável em alguns setores onde a China tem vantagens
comparativas - por exemplo, aqueles intensivos em mão-de-obra barata.
Mas o benefício global é certamente positivo. Principalmente para o
Brasil, que tem tido um ganho considerável nos preços das suas
commodities e nas exportações para a China.
O curioso é que esse aumento do protecionismo ocorre após a revisão
do Produto Interno Bruto (PIB), quando descobrimos que o Brasil é uma
economia ainda mais fechada. A soma das exportações mais as
importações como proporção do PIB, medida clássica do grau de
abertura de uma economia, é de apenas 22%, o que dificulta a
integração com o resto do mundo e a absorção de tecnologias que
venham a aumentar a produtividade da economia.
Uma coincidência infeliz é a combinação dessa medida com o debate
recente de política monetária. Um dia após a adoção dessa medida
protecionista, foi divulgada a Ata da reunião do Copom, em que houve
uma decisão dividida. Nessa minuta, três diretores votaram pela
redução mais acelerada da taxa de juros, citando o aumento das
importações como fator benéfico para o controle da inflação:
"Participantes do Copom argumentaram que se acumulam sinais de que a
contribuição das importações, por meio da disciplina exercida sobre
os preços de bens transacionáveis em ambiente de demanda robusta,
para a consolidação de um cenário benigno para a inflação no
horizonte de projeção, poderá ser maior do que a inicialmente
contemplada." Nada pior para dificultar a queda mais acelerada da
taxa de juros que tornar as importações mais caras e limitadas.
Não há aqui nenhum julgamento de valor sobre a importância e a
competência dos setores beneficiados pela medida. Está claro que
esses setores têm sofrido com a concorrência externa e com a
valorização do câmbio dos últimos anos. Mas, apesar dessa situação
particular desses setores, o impacto dessa medida sobre a economia -
inflação, juros, câmbio e crescimento - não justifica sua adoção.
Em suma, a medida adotada foi exatamente na direção oposta à
necessária para a economia, pois beneficiou alguns à custa da
maioria: os consumidores pagarão mais caro pelos produtos têxteis e
calçados. Uma redução de tarifas de importação, ao contrário,
contribuiria para a queda da inflação e dos juros, permitiria um
câmbio menos pressionado e tornaria as exportações mais competitivas,
possibilitando elevar a taxa de crescimento da economia. O aspecto
mais positivo dessa medida adotada é seu alcance limitado, afetando
apenas determinados produtos: não acredito num impacto macroeconômico
relevante. O sinal emitido é ruim e inconsistente com os objetivos
macroeconômicos do País.
Nos últimos tempos, estão surgindo medidas econômicas esdrúxulas.
Isso ocorre num momento em que a situação econômica do Brasil
melhorou significativamente, em razão do momento favorável econômico
mundial, assim como dos esforços (inclusive do Banco Central) e das
conquistas institucionais do passado recente e mais distante. Mas
esse tipo de medida deixa claro que há atores se beneficiando dessa
situação favorável e, ao mesmo tempo, tomando decisões que atuam na
direção contrária à sua sustentabilidade. Até quando?
*Ilan Goldfajn, sócio da Ciano Investimentos, diretor do Iepe-Casa
das Garças. E-mail: igoldfajn@cianoinvest.com.br.