Gilberto Dupas
A crise ecológica global está próxima de subverter as condições de habitabilidade do planeta e impor uma recessão severa à atividade econômica, agravando dramas sociais e fragilizando a espécie humana. A natureza parece estar opondo uma recusa não negociável ao frenesi da lógica capitalista global; ela reage e sofre perturbações climáticas de conseqüências imprevisíveis, exaustão de combustíveis fósseis e contaminação das fontes de renovação da vida e da água. Poluição e dejetos tóxicos cancerígenos se acumulam e diminui a fertilidade de terras, rios e oceanos que nutrem o planeta. Essa crise é conseqüência direta de nossos comportamentos, modos de produção e consumo. Não sabemos se a tragédia já está programada ou se ainda é reversível. E duvidamos de nossa vontade e capacidade de agir. Tudo vai depender de nossa condição para rever o sistema econômico vigente.
Em fevereiro, após a divulgação do primeiro sumário do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC), em Paris, países como EUA e China - dois dos maiores poluidores do planeta e parceiros principais do modelo atual de expansão econômica - desencadearam uma ampla ofensiva para o abrandamento das suas conclusões. Mas cientistas respeitados como John Holdren, diretor do Programa de Ciência, Tecnologia e Políticas Públicas da Universidade Harvard, garantem que a situação é ainda pior do que parece. Afirmam que a concentração de CO2 na atmosfera já ultrapassou o limite do “perigoso”, caminhando para o “catastrófico”, uma espécie de “ponto sem volta” que poderia não permitir mais controles.
Schumpeter definiu a “destruição criativa” como o motor da acumulação no capitalismo. Ou seja, o papel da ciência nessa dinâmica é promover um permanente estado de inovação, tornando obsoletos os produtos; e o da propaganda é criar novos e irresistíveis “objetos de desejo”. São casos típicos a conversão de TVs comuns em telas de plasma e o contínuo sucateamento de telefones celulares e computadores. Propostas para lidar com o imenso desafio ambiental começam a surgir. Mas, em geral, as reações dos agentes econômicos são cosméticas e mercadológicas. No caso do desemprego e da exclusão causados pela automação e pela informalidade, inventou-se a “responsabilidade social da empresa”; agora se fala em empresas “verdes”, “responsabilidade ambiental”, adição de etanol à gasolina, etc.
Acontece que as ações compatíveis com a escala e gravidade do problema do meio ambiente exigem modificações profundas no próprio modelo econômico dominante e nos seus processos de fabricação. O Comitê de Vigília Ecológica, grupo de cientistas franceses reunidos pela Fundação Nicolas Hulot, propõe - em lugar de uma economia que desperdiça recursos e acumula dejetos - que os ecossistemas industriais passem a funcionar em equilíbrio com os ecossistemas naturais. A meta estratégica industrial se inverteria: redução, reutilização, reparação e reciclagem da produção; e mudariam os processos de fabricação em função de seu balanço ecológico. Uma nova “funcionalidade” privilegiaria o uso à posse de um bem. A concepção dos produtos favoreceria um hardware durável que incorporaria inovações sucessivas (softwares). Com isso o impacto no emprego seria muito positivo e amplamente distribuído, já que a manutenção gera muito mais mão-de-obra que a fabricação e está próxima do produto. A meta seria valorizar, mais do que descartar; e nunca desperdiçar.
Esse caminho exigiria, no caso da energia, a introdução de uma taxa de carbono progressiva mundial. Quem emitisse mais carbono pagaria por isso. Seria preciso um estudo sistemático das quantidades de material e energia necessárias à produção de cada produto, desde que nasce até que é sucateado, verificando o seu impacto ambiental, “precificando” excessos e premiando reduções. Quanto mais durável o bem, mais incentivado. Mas como conseguir essa revolução, numa economia de mercado livre, sem uma forte intervenção regulatória? No caso dos autos, por exemplo, de nada serve o avanço técnico em motores menos poluentes, se os chineses tiverem como meta o carro barato individual.
Será possível o sistema capitalista se auto-regular de modo a produzir seriamente bens com ecoconcepção, duráveis, recicláveis, recuperáveis e biodegradáveis? Não parece provável que o mercado caminhe espontaneamente para essa direção sem pesada regulação, mesmo com aumento do preço de materiais e energia. Veja-se hoje o caso dos preços do petróleo e das matérias-primas com a demanda chinesa. Seria fundamental que o poder público se engajasse duramente. Trata-se de imensa tarefa de reconversão global dos meios privados de produção em meio à disputa brutal por competitividade; modificação da natureza dos produtos, mudança de status dos bens, alteração dos sistemas comerciais; e reconversão da direção dos vetores tecnológicos. Mas como convencer China e Índia, que agora acham ter chegado sua vez? E como reverter a lógica competitiva das empresas globais?
Decisões para superar essa crise implicarão grandes perdedores. Como torná-las possíveis? Nossa geração se vê na obrigação de tentá-las, sob pena de condenar a humanidade a um declínio grave. O derretimento da tundra do norte da Rússia (que contém 80 anos de emissões de carbono em seu solo congelado) e das geleiras da Groenlândia e da Antártida Ocidental (que podem elevar significativamente o nível dos oceanos) são enormes sinais de alerta. John Holdren nos adverte: “Estamos dirigindo um carro na neblina, com freios ruins, em direção a um abismo. Não temos certeza de que vamos conseguir frear antes de cair.” É preciso tentar, a todo custo, acionar o freio de emergência.
Gilberto Dupas, presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI), coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional da USP, é autor de vários livros, entre os quais O Mito do Progresso (Editora Unesp)