Entrevista:O Estado inteligente

sábado, maio 19, 2007

Roberto Pompeu de Toledo


Em trânsito

Um Brasil em estado bruto surge de um filme
sobre o vai-e-vem das pessoas em São Paulo

Capão Redondo, Cidade Tiradentes, Jardim Ângela. São esses os pontos de partida (ou de chegada) de um documentário que estreou na semana passada em São Paulo – Em Trânsito, de Henri Arraes Gervaiseau. Antes, quando se queria lembrar de um bairro de São Paulo, vinham à mente Brás, Vila Mariana, Higienópolis. Nos dias que correm incorporamos Capão Redondo, Cidade Tiradentes e Jardim Ângela, bairros lá longe, na periferia da periferia. Não é apenas que eles aparecem com insistência nas notícias, nas conversas, nos livros. Eles viraram mais emblemáticos da megalópole do que os bairros tradicionais. Neles viceja a realidade trágica da pobreza e da violência, mas também as maiores novidades em matéria de vocabulário, de gestos, de costumes. Antes, a perifa era só a perifa. Vegetava em seu anonimato, mais escondida que continente submerso no oceano. De uns tempos para cá fez valer os seus direitos. Está virando centro. Já é, em certos aspectos, mais centro do que o centro.

O filme de Gervaiseau é, como o nome indica, sobre gente que circula – de ônibus, de metrô, de trem, de moto, de carro, a pé. Seria a rigor um filme sobre todo mundo, pois todo mundo circula. Sim, mas há os que circulam mais do que os outros – as pessoas que gastam três, quatro, cinco ou seis horas de seu dia no deslocamento entre casa e trabalho e vice-versa. É essa gente que aparece preferencialmente no filme, alguns morrendo de sono, ao sacolejo do veículo, outros muito despertos, como o grupo que toda manhã aproveita a viagem para pregações, rezas e cânticos evangélicos num vagão de trem. O percurso sempre começa e termina no Capão Redondo, na Cidade Tiradentes, no Jardim Ângela ou em lugares semelhantes. Às vezes durante a viagem, às vezes no ponto de chegada ou de partida, as pessoas contam um pouco de sua história.

É assim que travamos conhecimento com personagens como Carlos Alberto Alves de Sousa, o "Kall", morador "do Capão", como ele diz, ali por volta de seus 30 anos, rosto redondo, barbicha e pele morena. Ao surgir na tela ele está acabando de sentar no banco do ônibus. Claro, está sendo filmado, e então explica à moça ao lado: "Vai rolar um filme sobre gente que anda de ônibus, e sou um dos personagens". A conversa continua, e ele conta que é estudante de ciências sociais, trabalha no Criança Esperança e é rapper. Ah sim, e naquele momento está sendo "artista por um dia". Kall é simpático, falante, inteligente. Mais adiante, vai aparecer em sua casa. Entusiasma-se ao discorrer sobre o rap e o que ele significa em sua vida. Depois conta que um dia desses mataram uma pessoa bem ali ao lado, e – horror – da sua casa ele ouvia as crianças da redondeza a contar quantas marcas de balas exibia o cadáver. Sua filha de 9 anos quis se juntar ao grupo. Ele não deixou.

Uma das boas coisas que têm acontecido no cinema brasileiro nos últimos tempos são os documentários. Antes de Em Trânsito, esteve em cartaz Pro Dia Nascer Feliz, de João Jardim, um retrato da situação nas escolas. O que tem em comum com Em Trânsito é que um e outro oferecem uma lição de Brasil. Um Brasil bruto, assustador, impiedoso, magnânimo, generoso, que toma pancada e se vira. Para quem vive e só circula nas regiões mais abonadas, é a oportunidade de cruzar uma fronteira e, pelo menos no cinema, tomar contato com essa nação vizinha. Em Em Trânsito aparece a dramática empregada doméstica de 40 anos, com aparência de 60, que andava 22 quilômetros a pé por dia para ir e voltar do trabalho. Mas também a outra empregada que conta com graça que largou a igreja evangélica no dia em que o pastor pediu aos fiéis que deixassem como donativo o último passe que tivessem consigo. "O último passe? E como é que eu ia voltar para casa?" Decidiu nesse instante que retornaria ao seio da Igreja Católica.

Em Trânsito, para além dos personagens, pode ser visto como uma alegoria da cidade em si, em sua característica mais típica, que é, em mais de um sentido, estar em trânsito. A cidade que viveu seus primeiros anos como misto de taba de índio e acampamento de sertanista, passou séculos como inexpressivo vilarejo do interior, imaginou-se, no início do século XX, bafejada pelo progresso, uma réplica de cidade européia, e chegou a embalar-se mais adiante no sonho de uma Manhattan dos trópicos acabou, nestes últimos anos, tendo nas ruas empoeiradas e nas casas cobertas de laje do Capão Redondo, de Cidade Tiradentes e do Jardim Ângela uma de suas expressões mais típicas. Isso quanto ao trânsito histórico. Um outro trânsito é o trânsito propriamente dito, o que aparece concretamente no filme. Para muitos, São Paulo resume-se a isso: um delírio de vai-e-vem. Não é à toa que o principal assunto, entre os moradores, é o trânsito. Do casamento do trânsito histórico com o trânsito-trânsito resulta a percepção de um incessante circular, uma sina de mobilidade e de impermanência que é marca registrada de São Paulo.

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