Entrevista:O Estado inteligente

sábado, maio 19, 2007

A nova família e a Justiça

Comportamento
Com o seu advogado
ou com o meu?

A Justiça busca como lidar com os conflitos que
surgem na nova família brasileira, com seus hábitos
e costumes que ainda não estão previstos nas leis


Rosana Zakabi

Nélio Rodrigues/ 1º Plano

Indenização por falta de afeto
Os pais do analista de sistemas Alexandre Fortes, mineiro de 26 anos, separaram-se quando ele tinha 3 anos. No início, o pai o visitava, mas cortou as visitas ao se casar novamente. "Ele continuou a pagar pensão alimentícia, mas nunca mais veio me ver, nem quis me receber", diz Fortes (na foto, com a mãe). Em 2000, o rapaz decidiu processar o pai por abandono afetivo.
Esse argumento não existe nas leis, mas se tornou comum nos tribunais e os juízes freqüentemente o acatam. Fortes perdeu o processo, mas entrou com um recurso. "Quero apenas que meu caso sirva de exemplo para outros pais, porque os filhos sofrem muito com o abandono", ele diz.



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A sociedade brasileira consagrou nas últimas duas décadas um novo padrão familiar, e nem sempre a Justiça sabe como lidar com tantas novidades quando é chamada a intervir. As mulheres, favorecidas pela aceitação do sexo casual, inventaram a "produção independente" – o filho criado com pouca ou nenhuma participação do pai. Os testes de DNA, por sua vez, impedem que os homens reneguem a paternidade. Filhos de pais que se separam e se casam novamente, às vezes mais de uma vez, colecionam padrastos, madrastas, meios-irmãos, meias-irmãs e outros parentes adotivos. Os casais homossexuais já circulam fora do armário e à luz do dia. Toda essa revolução de costumes foi bem absorvida, mas, quando surgem conflitos na nova família brasileira, a dor de cabeça para os juízes e advogados é quase certa. Três casos de processos que aparecem com freqüência hoje nos tribunais e deixam a Justiça aturdida por falta de legislação específica para eles:

• O enteado entra com um processo pedindo pensão ao padrasto que já não vive com sua mãe.

• O filho pede indenização ao pai, há muitos anos ausente de sua vida, por abandono afetivo.

• O pai biológico de uma criança e o homem que a criou de fato brigam legalmente por sua guarda.

Fabiano Accorsi

A menina que tem dois pais
Os cabeleireiros paulistas Vasco Pedro da Gama Filho, de 35 anos, e Júnior de Carvalho, de 43, são pais de Theodora, de 5 anos. Eles conseguiram adotar a garota no ano passado. Foi o primeiro caso de adoção por um casal gay no Brasil. "O que nos ajudou foi a mudança na mentalidade das pessoas, sentimos que o preconceito contra a homossexualidade diminuiu muito", diz Gama Filho, que, junto com seu companheiro, vai à reunião de pais e mestres e freqüenta festas na escola da filha. No espaço destinado à filiação da certidão de nascimento de Theodora (abaixo), ambos aparecem como pais.

Diante de situações como essas, os juízes tentam encaixar o caso em leis já existentes ou simplesmente tentam julgar com base no bom senso. "Os juízes sempre tiveram leis claras e específicas para ampará-los em suas decisões sobre os diversos assuntos que envolvem as famílias. Hoje, para boa parte dos casos, não existe legislação", diz a desembargadora Maria Berenice Dias, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

A reviravolta na família brasileira – e, com ela, os impasses dos juristas – tem origem na ampla aceitação do divórcio no país. O número de separações judiciais cresceu 53% entre 1995 e 2005, enquanto a população aumentou apenas 14% no mesmo período. A idéia de que os casamentos duram para sempre se tornou um anacronismo. O divórcio permite que os brasileiros tenham novas chances de buscar a felicidade conjugal, mas abre caminho para as famílias formadas por filhos de várias uniões. O uso dos testes de DNA como prova legal de paternidade criou novas dúvidas para advogados e juízes na interpretação das leis. Hoje, nove de cada dez processos julgados nas varas de família de todo o país estão associados à investigação de paternidade e à exigência de pensão alimentícia. Até há poucos anos, do ponto de vista da lei, não havia a preocupação em saber quem era a mãe ou o pai verdadeiro. A legitimidade do filho era invariavelmente determinada pelo casamento. Atualmente, uma questão crucial emerge com freqüência nas disputas que envolvem paternidade: quem deve ser considerado pai de fato, aquele que concebeu a criança junto com a mãe ou aquele que a criou? Essa controvérsia gerou duas novas definições de pai entre os juristas: pai biológico e pai afetivo. Embora não constem do texto de lei alguma, ambas as definições são hoje usadas por juízes e advogados.

Mirian Fichtner

Ganha a criança quem dá amor
O técnico de informática Alexandre Denicol, de 30 anos, e a dona-de-casa Ana Paula Rabadan Denicol, de 36, ambos gaúchos, decidiram adotar o filho Fernando quando sua mãe biológica ainda estava grávida. "Ela não tinha condições de criá-lo, abriu mão da criança e já estava tudo certo para a adoção", diz Ana Paula. A mãe biológica mudou de idéia depois que Fernando nasceu, quando o casal já tinha a guarda provisória do bebê. A disputa na Justiça entre os pais afetivos e a mãe biológica durou um ano. Em novembro de 2004, o casal finalmente ganhou a guarda definitiva da criança, hoje com 3 anos. Ao contrário do que ocorria no passado, a Justiça brasileira hoje privilegia os laços afetivos em detrimento dos biológicos.

A guarda dos filhos, após a separação conjugal, é agora pautada por critérios diferentes daqueles do tempo em que o casamento era indissolúvel. O novo Código Civil, em vigor desde 2003, define que a guarda das crianças, que antes era prioridade da mulher, agora é de quem provar que tem melhores condições tanto financeiras quanto emocionais de criá-las. Com isso, os homens também podem pleitear a guarda. Foi uma evolução. Ocorre que, nos últimos anos, muitos pais divorciados passaram a optar pela guarda compartilhada, na qual a criança passa parte da semana com a mãe e outra parte com o pai. Dessa forma, ambos continuam a participar do dia-a-dia dos filhos e a dividir a responsabilidade sobre eles. O casal de paulistas Marcos Escorse e Kirlian Ferreira se separou em 2005 e optou pela guarda compartilhada do filho Gabriel, de 5 anos. "Dessa forma, Gabriel sente que ainda somos a família dele", diz Kirlian. Estima-se que 20% dos pais separados hoje adotem essa alternativa. A guarda compartilhada não existe como figura jurídica, mas os juízes a concedem baseados no fato de que ela parece favorecer todas as partes envolvidas.




Sem leis específicas para amparar suas decisões diante dos impasses da nova família brasileira, advogados e juízes iniciaram uma discussão em busca de parâmetros de julgamento. Há dez anos, foi fundado em Belo Horizonte o Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam), que hoje conta com 3.000 associados, principalmente advogados e juízes. A entidade estipulou regras sobre como agir em cada um dos casos que passaram a chegar aos tribunais. Os membros do Ibdfam chegaram à conclusão, hoje consagrada entre a maioria dos juízes de família, de que não basta julgar um caso considerando apenas os aspectos materiais. É preciso levar em conta o lado emocional das pessoas envolvidas. "O afeto tornou-se fator crucial nos tribunais", diz a juíza paranaense Lenice Bodstein, que já ocupou a direção do Ibdfam do Paraná. Até o fim da década de 90, por exemplo, considerava-se indiscutível que o pai é aquele que concebe a criança junto com a mãe. Hoje, a Justiça tende a considerar pai, com seus direitos e obrigações, aquele que criou a criança, em detrimento do pai biológico. Para a escrivã da Polícia Civil mineira Graciane Maria da Silva, o fator afeto foi decisivo para a conquista de duas vitórias na Justiça. Ela processou os filhos biológicos da mulher que a criou desde os 2 anos de idade, que lhe recusaram uma parte da herança da mãe. Embora não fosse adotada legalmente, Graciane reuniu provas de que a relação entre as duas era de mãe e filha. Os juízes aceitaram seus argumentos. "Hoje se vai à vara de família reclamar direitos que antes eram inimagináveis", diz a advogada paranaense Ana Cecília Parodi. No início do ano, Ana Cecília lançou o livro Responsabilidade Civil nos Relacionamentos Afetivos Pós-Modernos, para auxiliar juízes e advogados sobre como proceder ao deparar com conflitos que envolvem as novas relações familiares.

A valorização da afetividade no julgamento de questões familiares favoreceu outra vertente da nova família brasileira: os casais formados por homossexuais. Muitos gays vivem juntos durante décadas sem nunca adquirir os mesmos direitos dos casais heterossexuais, como pagamento de pensão ou inclusão no plano de saúde. Um homossexual só conseguia obter os direitos sobre a herança e os bens do casal se o caso fosse analisado na Justiça como sociedade de fato, ou seja, se ficasse comprovado que os dois haviam comprado os bens em parceria, como sócios num negócio. Foi o que aconteceu num episódio que se tornou célebre em 1989, quando o fotógrafo Marco Rodrigues ganhou na Justiça o direito a parte dos bens de seu parceiro, o artista plástico carioca Jorge Guinle Filho, com quem viveu por dezessete anos. Quando Guinle morreu, em 1987, sua família a princípio se recusou a dividir o patrimônio do artista com seu companheiro. A situação dos casais gays começou a mudar nos últimos cinco anos. Mesmo sem leis nas quais se amparar, os tribunais passaram a enxergar de forma diferente as ações que envolvem parceiros homossexuais.

Em 2001, pela primeira vez, a Justiça concedeu o direito à herança a um homossexual por reconhecer que ele tinha uma relação de afeto com o parceiro falecido. Depois disso, outras dez pessoas que viviam situações semelhantes ganharam a causa pelo mesmo atalho legal. A vitória mais recente dos gays nos tribunais foi a permissão para adotar crianças. Eles já podiam pleitear a adoção na Justiça individualmente desde a década de 90, mas só no ano passado conseguiram, pela primeira vez, adotar e registrar filhos como um casal. Até agora, três casais gays obtiveram esse direito. "Nas últimas duas décadas, os homossexuais passaram a entrar na Justiça com mais freqüência para exigir seus direitos, entre eles a inclusão no plano de saúde e o pagamento de pensão", diz a advogada em direito de família Sylvia Mendonça do Amaral, autora do livro Manual Prático dos Direitos de Homossexuais e Transexuais. "Muitos segmentos da sociedade começaram a ceder à pressão, mesmo antes de os casos irem parar na Justiça", diz ela.

Os gays estrangeiros conseguem visto permanente para ficar no Brasil com seu companheiro brasileiro desde 2003, quando o Conselho Nacional de Imigração passou a conceder esse direito. Para obter o documento, eles precisam comprovar que já vivem em união estável, procedimento semelhante ao exigido para os casais heterossexuais. Antes disso, os gays só conseguiam esse direito por meio de ações na Justiça e raramente tinham êxito. Segundo Ana Lucia Saboia, gerente da divisão de indicadores sociais do IBGE, o próximo censo do instituto, a ser realizado em 2010, deve incluir nos questionários perguntas sobre parceiros do mesmo sexo, além de apurar o número de enteados nas residências pesquisadas. Com estatísticas na mão, será mais fácil para a Justiça julgar os conflitos que surgem na nova família brasileira.

Com reportagem de Daniel Salles

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