Sergio Fausto
O presidente Lula acrescentou na última semana mais uma pérola à longa lista de preciosidades ditas por ele desde o início de seu primeiro mandato. Em entrevista à Rádio Aparecida, comparou as denúncias de envolvimento do seu governo no esquema de compra de votos no Congresso, o famoso “mensalão”, com as acusações que sofreram os religiosos da chamada Igreja progressista nos anos de chumbo da ditadura militar. Seriam, o seu governo e os religiosos da Teologia da Libertação, então tachados de “comunistas” pelos setores mais boçais do regime, ambos vítimas da difamação de seus adversários.
Na boca de um cidadão comum, tal comparação seria apenas um disparate sem maior conseqüência. Na boca do presidente, ela é grave, porque deforma a História com o propósito de favorecer uma estratégia de poder por meio da manipulação deliberada do passado.
Nesse passo, Lula vai além do esvaziamento do debate público pela cooptação vexatória de ex-adversários, apontado neste espaço por Demétrio Magnoli, em artigo recente. Aqui não se trata apenas de confinar-nos ao silêncio dos “idiotas” - nome que os gregos davam aos expectadores passivos dos debates na ágora -, como alertou Magnoli. Trata-se de nos fazer coniventes com a falsificação da História.
A declaração de Lula faz parte de uma tenebrosa família, embora seja justo reconhecer que é uma parente distante, uma vez que na retórica e na prática do presidente inexiste o “pathos” que distingue os grandes produtores de falsificações históricas para fins políticos. A prole é extensa e vai desde a retórica oficial justificadora dos massacres de raças ou de “inimigos da revolução” - como as mentiras propaladas sobre os judeus pelo nazismo, no primeiro caso, e os processos de Moscou, no segundo - até versões mais brandas, como a que registrou o líder da extrema-direita francesa, Le Pen, ao dizer, anos atrás, que os campos de extermínio eram “apenas um detalhe na História da Europa”.
Mesmo que a relação de parentesco seja distante, mesmo que seja produto mais da irreflexão sobre a História e os seus significados para o presente do que de um intento deliberado de falsificá-la, ainda assim, a declaração merece repúdio. Primeiro, porque não é a primeira vez que Lula deforma o passado a favor de si mesmo e de seu governo. Segundo, porque essa reiteração é indicativa de falta de noção clara sobre os limites da ação e da palavra de um presidente numa sociedade democrática.
Não é necessário compartilhar a visão de mundo e o ideário da Teologia da Libertação, nem mesmo ser religioso, para reconhecer a coragem política que tiveram homens como dom Hélder Câmara e dom Paulo Evaristo Arns na defesa da liberdade e dos direitos humanos, sob o regime militar. Não poucos antigos militantes do partido de Lula e de outros partidos, que estiveram juntos na luta contra a ditadura, devem a própria vida ao destemor desses religiosos. Ao comparar o “martírio” sofrido por seu governo à situação enfrentada por eles, o presidente buscou cobrir de santidade, às vésperas da visita papal, o aspecto mais obscuro e condenável de seu governo, sobre o qual pesam suspeitas fundamentadas e jamais desmentidas convincentemente: a orquestração de um sistema de corrupção jamais visto neste país, na escala e na proporção que presumivelmente assumiu.
Fique bem claro que a “difamação” dos religiosos da Teologia da Libertação se referia a um “delito” só caracterizável como tal na ótica da ditadura. Eles não eram “comunistas”. Eram católicos de esquerda, uns mais, outros menos próximos do marxismo. Seja como for, a “acusação” não encontrava respaldo num princípio universalmente aceito e fazia parte de uma batalha político-ideológica por meios não democráticos.
Nada mais contrastante com as acusações feitas ao atual governo. Estas se assentam em princípios consensuais num regime democrático e republicano - o mais comezinho dele distingue o que são recursos públicos do que são recursos privados e os usos que se podem fazer de uns e de outros. Assentam-se também na legislação vigente, que prevê os crimes de prevaricação, concussão e o de responsabilidade, este para o agente público que, entre outros, deixar de seguir o princípio de não roubar e não deixar roubar. As acusações cursaram os meios legais adequados.
Perdida a disputa parlamentar, pela força da maioria do atual governo, o processo evoluiu pela interferência legítima do procurador-geral da República, em ação que só agora começa a ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Nela, nunca é demais recordar, vários altos dirigentes do atual governo, entre eles quatro ex-ministros, integrantes do seu núcleo decisório, estão enquadrados num extenso rol de crimes contra a administração pública.
Do STF devemos esperar que julgue os casos, com a máxima celeridade possível, sem ferir a legalidade. Do presidente devemos exigir que se abstenha de declarações que, com o propósito de obter ganhos políticos, afrontam a memória histórica, insultam a inteligência das pessoas e, mais grave ainda, desmoralizam os princípios éticos no campo da política e da gestão pública. Seria pedir muito?
Em tempo - Por outro lado, merece apoio e aplauso a posição do presidente e de seu governo ante a polêmica sobre o aborto, provocada pela Igreja Católica e reforçada pelo papa. Num Estado laico, como o nosso, é questão que deve ser entendida pela ótica da saúde pública e submetida, ao final, a referendo popular. Com outras palavras, disse bem o ministro da Saúde: dogmas da fé não podem impedir a deliberação democrática sobre assuntos ao alcance da razão humana.
Sergio Fausto, cientista político, ex-assessor do Ministério da Fazenda, é coordenador de Estudos e Debates do Instituto Fernando Henrique Cardoso. E-mail: sfausto40@hotmail.com