Bolsa Família, embora existam discordâncias sobre a maneira de tocá-
lo e, sobretudo, sobre o seu alcance na inclusão social. O ex-
assessor especial do Palácio do Planalto Frei Betto, um dos
principais idealizadores do Fome Zero, que deveria ser o principal
programa social do governo Lula e acabou ofuscado pelo Bolsa Família,
conta no livro "O calendário do poder", a ser lançado no início do
próximo mês, os percalços da sua implantação. Ao mesmo tempo em que
cita a "distribuição de renda mínima" e o "direito à alimentação e à
nutrição" como pontos positivos do primeiro governo Lula, Frei Betto
discorda da maneira como foi implantado o Bolsa Família,
especialmente pela falta de reformas estruturais, e pelo fato de o
acompanhamento de saúde e freqüência escolar não ser considerado
prioritário pelo Ministério do Desenvolvimento Social.
Além disso, os comitês gestores, que controlariam a execução do
programa nos municípios para impedir que os políticos os
manipulassem, acabaram perdendo a função justamente para os
políticos, que passaram a ter no Bolsa Família uma ferramenta
eleitoral poderosa. A disputa entre Frei Betto e a equipe do novo
ministro Patrus Ananias sobre os comitês é emblemática da divisão que
havia dentro do governo naquele momento.
Em carta ao presidente Lula de setembro de 2003, Frei Betto diz que
há "duas concepções" em relação à unificação dos programas sociais:
"uma centrada na mera transferência de renda, e outra interessada em
fazer da transferência de renda instrumento de inclusão social. A
primeira pode nos levar ao assistencialismo, tornando a figura do
governo um balcão de obtenção de renda fácil." E sugere que Ana
Fonseca, uma reconhecida especialista, fosse mantida à frente do
programa por representar melhor a segunda opção. Meses depois, Ana
Fonseca foi demitida.
Os comitês gestores passaram a ser comitês Fome Zero e ficaram
subordinados aos prefeitos, de acordo com a parceria do pacto
federativo defendido pelo ministro Patrus Ananias, ex-prefeito.
Na carta em que pediu demissão formalmente, em outubro de 2004, Frei
Betto, a certa altura, pergunta a Lula: "E quando terminar a
transferência de renda? Como o Bolsa Família poderá assegurar a
inserção social (e não meras políticas compensatórias, como quer o
Banco Mundial) sem as reformas estr uturais?" Antes, em abril, em
outra carta, Frei Betto já tocara no assunto: "Se o Bolsa Família não
for complementado por reformas estruturais, haverá um desastre. Já
pensou no dia em que os benefícios financeiros forem suspensos? Os
beneficiários ficarão, além de mais pobres, também revoltados.
Mas se houver, de fato, a sinergia da reforma agrária, da saúde, da
educação, do saneamento, da cooperativa, do microcrédito, faremos uma
revolução pacífica neste país.
Por favor, não peça mais paciência à nação." E adiante: "Ouça a voz
de Deus na sua intuição; não se arrisque a repetir o vexame histórico
de Lech Walesa, de Daniel Ortega, e de tantos outros que frustraram a
esperança de milhões de pessoas de bem." O fantasma de governos de
esquerda que falharam perseguia os petistas nos primeiros momentos do
governo Lula.
Em uma das muitas discussões reproduzidas no livro, o cientista
político Pedro Ribeiro de Oliveira, referindo-se à crise desencadeada
pelo escândalo Waldomiro Diniz, fez o seguinte diagnóstico: "Não
podemos repetir a fé que tivemos no sandinismo; acreditávamos mesmo
vendo as coisas desabarem.
Temos que nos abrir a outras mediações".
O secretário particular de Lula, Gilberto Carvalho, lamentase: "Até o
caso Waldomiro, era um orgulho o governo não ter um caso de corrupção.
Foi uma pancada. No entanto, a esquerda mundial cedeu à corrupção:
Nicarágua, El Salvador, União Soviética.
Waldomiro virou a Geni. Nos ajudou a derrubar o Collor e depois se
corrompeu." No epílogo do livro, Frei Betto diz que "está por ser
melhor analisada a relação da esquerda com o poder. Até agora nenhuma
experiência merece ser considerada exitosa.
O modelo da esquerda tem sido o figurino da direita".
E faz uma surpreendente, embora branda e metafórica, crítica ao
modelo político cubano, de seu amigo Fidel Castro: "Em Cuba,
bloqueada há mais de quatro décadas pela Casa Branca, o
monopartidarismo também inibe a oxigenação da esfera política através
do debate público e da organização da sociedade civil em movimentos
sociais autônomos." O livro de Frei Betto conta episódios pequenos
que mostram bem o poder por dentro.
Como a reação de Benedita da Silva, que, no dia em que tinha que
deixar o Ministério, se recusou a sair do gabinete, "não queria
largar o osso", segundo relato de Frei Betto, que usou o poder que
detinha como assessor especial da Presidência em vários episódios que
são contados no livro, até mesmo para ser o responsável pela escolha
de um ministro do Supremo Tribunal Federal que mal conhecia.
O episódio ilustra bem como são fortuitas, às vezes, as decisões de
governo, pelo menos deste governo. Frei Betto estava em uma fila
enorme numa agência da Varig para tratar do retorno a São Paulo,
depois da posse de Lula, e sentouse com a senha ao lado de um
"cidadão negro que eu nunca vira". Deu-se a pergunta: "Você é o Frei
Betto?" Com a confirmação, ele entregou seu cartão: Joaquim Barbosa,
jurista, procurador-regional da República, professor de direito no
Brasil e nos Estados Unidos. Betto diz que, depois da conversa, levou
de Joaquim Barbosa "o cartão e uma boa impressão".
Meses depois, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, em uma
conversa informal, disse que o presidente Lula queria nomear um negro
para o Supremo, e Betto lembrouse do cidadão da fila. O ministro da
Justiça ficou com o cartão e prometeu ouvi-lo. A nomeação de Joaquim
Barbosa foi atribuída em Brasília à influência de Frei Betto.