O governo deu o golpe do combate ao trabalho escravo para aumentar o imposto de artistas, jornalistas, intelectuais. Quando anunciou que vetaria a emenda 3, o motivo alegado era meritório: não limitar a atuação de fiscais do trabalho que, no interior do Brasil, combatem a velha chaga do trabalho escravo.
Na hora de propor nova lei, revela-se a verdade: o que o governo queria era apenas aumentar imposto.
Um fiscal, ao dar um flagrante de trabalho escravo, reconhece que há uma relação de trabalho entre aquelas pessoas que estão ali em condição subumana e a fazenda na qual trabalham. Isso permite a exigência de pagamento dos direitos trabalhistas.
Normalmente o proprietário alega que contratou um empreiteiro que trouxe os trabalhadores; esse intermediário, na maioria das vezes, é um ilegal exercendo as funções do feitor. Se o fiscal não pudesse mais reconhecer a verdadeira relação trabalhista — que é com a fazenda, e não com um intermediário — ele ficaria sem o poder que tem hoje, e o trabalhador teria que ir à Justiça reclamar seus direitos. A OIT achou que era um risco, e o governo aproveitou: usou isso para ter apoio no veto à emenda.
Se mais algum risco correriam os trabalhadores cuja única proteção que têm é o fiscal do trabalho; se esse fiscal, representando o Estado, ficaria impedido de os proteger, então a emenda, de fato, era perigosa demais. Escrevi isso na época. Mas, para ser coerente com a preocupação alegada, o que o governo deveria fazer? Um projeto que faça um cerco ao crime. E o que ele faz? Anuncia que vai aumentar o imposto sobre prestadores de serviço, cita como alvo jornalistas, artistas e intelectuais e avisa que cobrará 10% de INSS sobre o faturamento da empresa jurídica formada por esses profissionais.
— Não é apenas absurdo, é a maior contribuição previdenciária do mundo — diz Everardo Maciel, ex-secretário da Receita Federal.
Maciel defendeu a emenda 3 e acha que a OIT não tinha razão em falar em trabalho escravo: — A emenda impedia que a autoridade administrativa desconsiderasse ato jurídico entre duas pessoas jurídicas.
O trabalhador escravo não se enquadraria de forma alguma.
Desde o começo, isso foi explorado pelas corporações, pelos sindicatos, pelo governo, cada um com um interesse específico. Os sindicatos estão apenas defendendo o imposto sindical que recolhem; o governo quer aumentar o imposto.
Os sindicatos nada mais falam de trabalho escravo e, outro dia, paralisaram o metrô de São Paulo para protestar contra a emenda, sem que nenhuma palavra tenha sido dita sobre o grave problema.
Aliás, entrevistados, os grevistas nem sabiam explicar o que era a emenda.
Para completar o fim do disfarce, o secretário da Receita, Jorge Rachid, explicou o objetivo da proposta que será enviada ao Congresso: revogar o dispositivo da MP do Bem sobre prestadores de serviço intelectual, aumentar o imposto dos prestadores, e criar uma alíquota do INSS sobre faturamento da pessoa jurídica. Aí revelou quem realmente eles miravam quando vetaram a emenda 3.
— É a vingança pela derrota da 232 — alerta Everardo.
A MP 232 aumentava a tributação de 32% para 40% dos prestadores de serviço, e foi derrubada no Congresso.
A Receita ora diz que o objetivo é fechar um espaço de elisão fiscal que supostamente os prestadores de serviços estariam aproveitando para pagar menos impostos; ora diz que é uma forma de garantir que esses prestadores, que, na verdade, seriam pessoa física, tenham seus direitos trabalhistas.
Nem uma coisa, nem outra, na visão de Everardo: — Eles pagam Imposto de Renda, Contribuição Social sobre Lucro Líquido, Cofins, PIS, ISS, todos os impostos, taxas e custos de uma empresa.
Se o outro argumento é válido, e o governo quer garantir os direitos trabalhistas supostamente perdidos, por que então a decisão é aumentar o imposto sobre esses prestadores? Perguntei a Everardo se a campanha da oposição e dos empresários em favor da emenda 3 não tinha sido uma forma de fugir da questão principal: a necessidade de reformar a velha lei trabalhista, que não abre espaço para as variadas formas de trabalho e prestação de serviço do mundo atual.
— Esse assunto é mal tratado e mal explicado no Brasil.
Emprego é apenas uma das formas de trabalho, mas aqui é como se fosse a única forma possível. Existem no Brasil 3,5 milhões de ações trabalhistas; no Japão, são 3,5 mil ações. A Justiça do Trabalho tem um custo maior que o de todas as ações somadas.
No país, 60% da força de trabalho, 48 milhões de trabalhadores, são informais.
Como não pagam imposto sindical, os sindicatos não se preocupam com eles. Não pagam previdência e são elegíveis para o Bolsa Família ou para o Loas. Para os que têm vantagem com essa situação, a lei trabalhista não pode mudar nunca, está maravilhosa.
É difícil mudar uma lei com tantos interessados em que ela se perpetue.
Sindicatos, centrais sindicais, governo, Receita deveriam ter mais respeito pelo gravíssimo tema do trabalho escravo. Não deveriam usar uma chaga como essa para manipular a opinião pública. Se é com eles que estão preocupados, que proponham uma legislação mais dura contra escravizadores para erradicar essa chaga do país, em vez de inventar um novo truque para arrancar mais dinheiro dos contribuintes.
Entrevista:O Estado inteligente
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