Quase quatro anos depois da reunião da Organização Mundial do Comércio em Cancún, no México, quando as negociações da Rodada de Doha para liberalização do comércio internacional foram paralisadas por um impasse que colocou de um lado o recém-criado G-20, grupo de países emergentes liderado pelo Brasil, e de outro os Estados Unidos, o Japão e a União Européia, os presidentes Bush e Lula se encontram para tentar a retomada das negociações.
Da reunião de 2003, quando o presidente Lula se vangloriou de termos dado “uma trucada neles”, utilizando um jogo popular de cartas para dizer que os emergentes haviam conseguido paralisar os países desenvolvidos, até a reunião de Camp David, muitas situações geopolíticas mudaram no mundo e levaram a essa aproximação.
De líder hegemônico sem contraste a um presidente necessitando de apoio politico para não perder a influência dos Estados Unidos na América Latina, o presidente Bush aproxima-se de Lula, um líder esquerdista que chegou a ser comparado pela diplomacia americana a Fidel Castro e Hugo Chávez e hoje está nos Estados Unidos com o reconhecimento de que preside uma “potência regional” que pode ajudar a maior potência mundial a levar a democracia e o desenvolvimento a países pobres da África e do Caribe.
No caminho, ficaram para trás tanto posições antiamericanas da nossa política externa, quanto a arrogância e o desconhecimento da política latino-americana por parte da diplomacia dos Estados Unidos.
Desde 2005, depois da viagem de Bush ao nosso continente, operou-se uma mudança fundamental na estratégia da política externa americana.
O documento básico do governo Bush de diretrizes de segurança nacional, publicado em agosto de 2002, deixa muito claro que os EUA não fariam políticas regionais específicas e que não se relacionariam com os países do mundo pela mediação de potências regionais.
O professor de história contemporânea da UFRJ Francisco Carlos Teixeira tem uma análise muito clara para essa mudança de estratégia: Bush teria destruído a política latino-americana montada por seu antecessor Bill Clinton, porque a Alca não vingou, e, por outro lado, a China se tornou um dos grandes parceiros dos países latino-americanos.
Hoje, México, Brasil, e Venezuela têm parcerias de grande relevância com a China, com perspectivas de ampliação. A China tanto vende armamento para a Venezuela quanto está interessada em investimentos diretos na área de petróleo off-shore da Venezuela e negocia gás com a Bolívia.
Ao mesmo tempo, a necessidade de aumentar a utilização de combustíveis alternativos, tanto por questões ambientais quanto por estratégia política, levou à aproximação dos Estados Unidos com o Brasil, e ao afastamento do Brasil de parceiros regionais como a Venezuela e Cuba.
O etanol e os biocombustíveis nos unem mais aos americanos do que aos bolivarianos, o que não quer dizer que nossa política externa sofrerá alterações bruscas, mas apenas mudanças de tendências.
A retomada das negociações da rodada de Doha certamente não sairá das reuniões de Camp David, mas é provável que o ambiente politico fique mais favorável a elas depois do comunicado oficial. Nesse período de encontros e desencontros, ficou claro que o governo brasileiro tem atitudes pragmáticas diante do comércio internacional, e nessas questões em nada é parecido com os governos de Havana e Caracas.
Um bom exemplo dessas diferenças é a utilização política que Hugo Chávez faz da Pedevsa, a companhia de petróleo venezuelana, ao contrário da Petrobras, que não é vista como uma ferramenta de política externa pelo governo brasileiro.
Um caso sintomático é o das pressões americanas para que a Petrobras deixe de fazer negócios com petróleo e gás com o Irã.
A resposta do chanceler Celso Amorim retirou das ações da estatal brasileira qualquer sinal de politização, e reafirmou que o Brasil cumpre estritamente as sanções previstas pelo Conselho de Segurança da ONU. De fato, recentemente o governo brasileiro apressouse a publicar no Diário Oficial a proibição da transferência de itens, materiais ou equipamentos ao Irã que pudessem ser utilizados para a fabricação de artefatos nucleares, no que foi interpretado como um gesto de boa-vontade em direção ao governo americano.
O professor Francisco Carlos Teixeira atribui à seriedade profissional reinante na Petrobras alguns choques com a mentalidade que predomina na Venezuela, como no caso do gasoduto de integração sul-americana, que foi redesenhado na sua parte brasileira para não colocar em risco o meio ambiente na Amazônia.
A Petrobras está associada a grandes empresas estrangeiras, lembra Francisco Carlos Teixeira, como a Halliburton, “para horror de Chávez”. Por isso, encontrando eco na Bolívia e em Cuba, Chávez insiste em declarar oficiosamente a Petrobras como uma multinacional associada ao capital estrangeiro e estranha ao projeto de integração continental, analisa Teixeira.
Embora Lula pretenda visitar a Venezuela e talvez Cuba nos próximos meses, fica claro que os interesses econômicos brasileiros nos distanciam dos interesses políticos desse grupo de países que hoje orbita em torno dos petrodólares de Chávez. O reconhecimento dos Estados Unidos de que o Brasil é a potência regional que conta no continente, e o futuro dos biocombustíveis como alternativa ao petróleo, nos colocam em contraposição aos projetos políticos de Chávez e seu grupo.
Entrevista:O Estado inteligente
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